terça-feira, 29 de dezembro de 2020

DEUS CONNOSCO


«O Deus Connosco não aparece entre nós como um líder valente ou um chefe carismático que motiva em nós a vontade de lutar.

O Deus Connosco não aparece no meio de nós como alguém forte a provocar em nós a capacidade de obedecer.

O Deus Connosco aparece no meio de nós como alguém que quer provocar em nós a Sensibilidade, despertar o que há de mais íntimo em nós.

Deus vem visitar-nos para despertar em nós o carinho, a ternura, os sentimentos da nossa mais profunda humanidade.

Essa é a sua ideia… converter-nos, antes de tudo, à sensibilidade, à ternura, à doçura dos gestos, das palavras e das intenções.»
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Rui Santiago cssr

sábado, 26 de dezembro de 2020

A CRIANÇA É A MENSAGEM


A criança é a mensagem.
Um Deus que entra em nossa vida desde a meninice é o mais crente de nós.
Acredita em recomeços.
Tem fé nos reinícios.
Adere aos nossos renascimentos.
O bebé é Deus dizendo: «Faça como eu, recomece sempre que um novo início for a salvação.»
Ele não é o outro que vem a nós.
É o menino que vimos crescer.
Não chega. Nasce.
Não se impõe. Entrega-se.
Não reivindica. Serve.
Não esmaga. Mistura-se.
Conta histórias para contar-se entre nós...
Não intimida. Seduz.
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Elienai Cabral Junior


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

NATAL: A história recomeça dos últimos


«O Natal não é uma festa sentimental, é o novo ordenamento de todas as coisas: Deus entra no mundo a partir do ponto mais baixo, para que ninguém fique abaixo dele, ninguém deixe de ser alcançado pelo seu abraço que salva. A história recomeça dos últimos.

Enquanto que em Roma se decidem as sortes do mundo, enquanto as legiões mantêm a paz com a espada, neste mecanismo perfeitamente oleado cai um grão de areia: nasce uma criança, suficiente para mudar a direção da história. A nova capital do mundo é Belém.

O Natal é o maior ato de fé de Deus na humanidade: confia o filho nas mãos de uma jovem inexperiente e generosa, tem fé nela. Maria cuida do recém-nascido, alimenta-o de leite, de carícias e de sonhos. Fá-lo viver com o seu abraço.

Do mesmo modo, na incarnação nunca concluída do Verbo, Deus só viverá na nossa Terra se cuidarmos dele, como uma mãe, a cada dia.

Por quê o Natal? Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. Cristo nasce para que eu nasça. O nascimento de Jesus requer o meu nascimento: que eu nasça diferente e novo, que nasça com o Espírito de Deus em mim.

O Natal é a "reconsagração" do corpo. A certeza de que a nossa carne que Deus assumiu, amou, fez sua, é sagrada em qualquer dos seus membros, que a nossa história é sagrada qualquer que seja a sua página.

O Criador que tinha plasmado Adão com a argila do solo faz-se Ele mesmo argila deste nosso solo. O oleiro faz-se argila de um vaso frágil e belíssimo. E ninguém pode dizer: aqui acaba o homem, aqui começa Deus, porque Criador e criatura abraçam-se a partir de agora. Para sempre.»
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P. Ermes Ronchi (adaptado)
Desenho: Agustin de la Torre



quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

UM SANTO E FELIZ NATAL!


«Se, nas nossas vidas, cada noite pudesse vir a ser como uma noite de Natal, uma noite iluminada, a partir de dentro…

Já não sabendo como fazer para ser compreendido, o próprio Deus veio à Terra, pobre e humilde: se Jesus Cristo não tivesse vivido no meio de nós, Deus permaneceria longínquo, inatingível. Pela sua vida, Jesus concede-nos a graça de ver Deus de forma transparente.»
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Irmão Roger, de Taizé, in "Viver em tudo a paz do coração"

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O VERBO DE DEUS


O Verbo de Deus, dito e feito,
é "o tal” chamado Jesus…
Dito e feito,
Palavra em forma de Pessoa,
Palavra que vem conjugar-se connosco.
Por isso lhe chamamos Verbo!

O Verbo de Deus: o Forte a conjugar-se no Débil
O Verbo de Deus: o Senhor a conjugar-se no Servidor
O Verbo de Deus: o Imenso a conjugar-se no Pequeno
O Verbo de Deus: o Divino a conjugar-se no Humano
O Verbo de Deus: o Inocente a conjugar-se no Réu

E já não há por onde pegar
nessas antigas divindades todas manientas de poder,
porque o Divino veio pôr-se à conversa connosco
em linguagem de meninos,
na roda de uma família em festa de primogénito
que nos irá ensinar a lição trazida das entranhas,
o dicionário da Vida e da Alegria
que começa na palavra “ABBA”, Papá.

A duração das antigas divindades expirou
na adoração ao Deus Novo que “o tal” Jesus nos inspirou.
Quem diria que a Era do Messias
havia de abrir-se com um Tempo de Ternuras?
Quem diria que as bandeiras ao vento do Reino Messiânico
seriam como roupa de criança a secar ao sol?
Quem diria que o que salva o mundo
é o Riso enorme de Deus,
a gargalhada que lança sobre nós,
toda fonte de surpresas e redenção.

O nosso Deus Ri!
Só um Deus que Ri se lembraria de salvar o mundo pela Ironia.
Essa Ironia chamada Jesus, “o tal” Messias
"Reis dos Reis e Senhor dos Senhores,
Príncipe dos Exércitos do Altíssimo”
que está ali, afinal,
todo ternura, no colo de sua mãe
que acabou de lhe dar a mama.
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Rui Santiago cssr (adaptado)


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

MARIA FELIZ


«Estamos habituados a revoluções feitas com armas,
que deixam um fio de sangue a escorrer no chão…

Estamos habituados a confiar nas mudanças que são impostas pela força,
porque nos queixamos muito da violência mas é sempre a ela que recorremos
quando queremos que as coisas fiquem diferentes…

É por isso que o Evangelho ainda nos parece tão estranho, às vezes…
Porque nos conta a história de uma revolução feita de ternura.
Porque o Evangelho nos conta a mudança mais decisiva que foi introduzida no mundo,
mas é uma mudança selada pela mansidão e pela não-violência.

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
uma mulher que vivia numa aldeia pequenita da Galileia chamada Nazaré,
e ficou para sempre ligada à história que muda a história!
O nome dela era Maria
e foi da sua boca que nasceu o hino mais revolucionário que se tinha ouvido alguma vez.

Foi uma exultação de alegria,
porque há revoluções que nascem da Felicidade!
Foi um clarão de Esperança,
porque há revoluções que nascem de uma Promessa!

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
que sentiu a vida visitada pela bondade de Deus
e, por causa disso, abriu as portas e percorreu os montes.
Era uma vida d’esperanças, semeada de futuros,
e dentro de si uma Palavra ganhava corpo.

Foi ela quem ouviu a primeira Bem Aventurança do Evangelho:
“Feliz de ti que acreditaste que vai cumprir-se tudo o que foi dito da parte do Senhor!”
Por isso mesmo, ela cantou logo depois:
“De hoje em diante, todas as gerações me chamarão FELIZ!”

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
que era uma pessoa feliz por causa da Esperança que Deus encontrou nela e por causa da Confiança que ela encontrou em Deus.

Voltamos o nosso rosto para Maria
porque queremos aprender dela a coisa mais importante de todas:
que Esperança é essa,
que Confiança é essa,
que faz de ti “Maria Feliz”?»
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Rui Santiago cssr, in Derrotar Montanhas

domingo, 20 de dezembro de 2020

"FAÇA-SE"


«Maria tem esta capacidade de escutar e acolher a vida, de ser visitada, de não viver com a porta fechada. Maria deixa-se visitar. Tem esta honestidade muito grande, esta exposição, e depois esta compreensão de que a vida não é apenas a realização da felicidade que eu pensei para mim próprio, mas que é a compreensão de que estou ao serviço de uma história maior, de uma história que me ultrapassa, e na qual o Espírito Santo me vai dar a força de participar, vai-me dar a competência de ser, colocando-me inteiramente ao serviço. (...)

E num “Sim” a história abre-se, a história reabre-se, torna-se o rio de Deus, a torrente por onde a Graça de Deus passa. Pedimos a Deus a força para cada um de nós dizer “Sim”, dizer “Faça-se”, dizer “Cumpra-se”. Porque é quando dizemos isso na nossa humildade – e ninguém é mais humilde do que Maria – “Sim, faça-se” que de facto há um rio transbordante de Graça, de vida, de entusiasmo, de uma forma que até nós não sabemos.
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Nós pensamos: Maria tinha consciência de tudo? Não, entregou-se, disse “Sim”. Que, do fundo da nossa vida, nós também possamos dizer “Sim” a este Deus que vem, que vem até nós e vem através de nós.»
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Cardeal D. José Tolentino Mendonça
Imagem: Ícone da Mãe do "Faça-se".

sábado, 19 de dezembro de 2020

GRÁVIDOS DE LUZ


Orígenes afirmou que a imagem mais plástica e potente do cristão é a de uma mulher grávida que caminha levando para o meio do mundo uma vida nova.

"Todos somos chamados a ser mães de Deus. Deus precisa sempre de vir ao mundo." (Mestre Eckhart)

"Maria grávida de Deus, percorrendo os montes de Judá, é a imagem mais potente que o Evangelho nos dá sobre o sentido e o fim da nossa vida. É uma metáfora prodigiosa. Ser grávidos de Deus, grávidos de luz, significa viver na presença. Não é preciso estar sempre a pensar em Deus, porque já está dentro de mim, como um filho no ventre materno. Sinto que cresce em mim uma espécie de certeza interior, porque existe em mim um depósito de ouro puro a consignar." (Simone Weil)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

PALAVRAS? PERGUNTAS?


“Um Menino nasceu para nós! Um Filho nos foi dado”!

Que NOS fica de cada Natal celebrado?
São palavras? São perguntas? 

Nascem dos olhos, abertos, perspicazes… das notícias que magoam os ouvidos… das pontas dos dedos da Ternura… do Silêncio e dos gritos que se ouvem e… não calamos…

Nascem do Dom sempre inesperado… nascem da Gratidão… 

Nascem do espanto… do Milagre anunciado: 

“Um Deus que aceita fazer-se tempo irrompendo no mundo em meses estabelecidos com nascimento, morte e ressurreição” 

Menino sem lugar como tantos meninos “Nascesses hoje, e seria num barco de imigrados, atirado ao mar juntamente com a mãe, à vista da costa da Puglia, da Calábria”… 

Chegarias talvez num barco sírio empurrado até às loiras praias da ilha de Lampedusa, por 3 correntes contrárias - ganância, guerra, Esperança... Serias talvez desinfectado nu entre muitos num qualquer centro de “acolhimento”…

São palavras? São perguntas "para andar a girar na boca"? 

Em que caderno, em que bolso, em que gaveta nós as vamos arrumar? 

*Os excertos entre aspas saíram de um livro chamado “Caroço de Azeitona” de Erri de Luca
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Glória Marques
Desenho: Agustin De La Torre

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JOSÉ


Estás em mim, ó Deus
Brilhas nas obscuras margens do meu nome
Ouves a canção dos meus anos,
que por vezes é pedra, por vezes acorde iluminado.

Que nunca o mundo me pareça um lugar indiferente.
Que a chama da Tua presença ilumine tudo por dentro
e eu não queira, não possa dizer outra coisa
senão a maravilhosa transparência onde Te contemplo.

Ao irmos e virmos, somos o Teu mapa
desfalecendo, mas retomando a marcha,
pois sabemos que no fundo desta massa informe
colocastes, Senhor, o irresistível desejo
que a todos faz gritar: “Vem!”
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José Tolentino Mendonça

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

POR BAIXO DE TODAS AS PLÁSTICAS


«Quero encontrar-te, amar-te e anunciar-te sempre, Jesus, para além de todas as plásticas, por baixo de todas elas (...)

Pintaram-te o cabelo de loiro, esticadinho e com uma risca ao meio, conseguiram dar-te olhos verdes ou azuis, empalideceram-te o rosto para ficares parecido com os modelos da nossa santidade medieval, adocicaram-te as formas todas…

Endeusaram-te as palavras de tal maneira que deixaram de ser verdadeiramente nossas e para nós, efeminaram-te o andar e os gestos vezes demais, tiraram-te força à voz e virilidade às opções…

Oh Jesus… Vezes demais a teologia te enxotou para o céu das divindades e a devoção te guardou numa caixinha sagrada! Queremos o Evangelho de volta, a Boa Notícia da tua presença re-suscitada, a experiência de que continuas a sentar-te à mesa para comer e beber connosco, continuas a passar por nós fazendo o bem, curando e libertando todos os oprimidos por aquilo que é mau.

E tenho a certeza que tu estás connosco. Tenho a certeza! Estás Vivo e estás connosco. Estás connosco com aquele jeito galileu que os pobres, os pequenos, os pecadores, os tristes, as crianças e os impuros conheciam muito bem…

Estás connosco assim, e de maneira plena, porque esse teu jeito de estar e amar foi re-suscitado, exaltado, confirmado e glorificado por Deus. Estás connosco assim, “galileu sem instrução”, como te acusavam, nazareno “que te fazes acompanhar de gente impura que não cumpre a Lei”, profeta surpreendente que “fala com autoridade e não como os doutores da Lei”, mestre que ensina os discípulos a sentarem-se em grupos e lhes diz que chegou a hora de partir o pão, repartir o farnel e experimentar o milagre da multiplicação e da abundância que gera Vida e Felicidade.

Estás connosco assim, dizendo sempre de novo “o Reino de Deus está próximo”, está aí, ao alcance, mesmo mesmo a acontecer no lado de dentro do tempo que passa e no mais íntimo das ações das pessoas tocadas pelo amor.»

Rui Santiago cssr (adaptado)

Foto: Michael Belk


sábado, 12 de dezembro de 2020

"Ninguém vem ao Pai a não ser por mim." (João 14:6)


"Esta é a frase de Jesus que os fundamentalistas cristãos e os «exclusivistas» citam com predileção. (...) No entanto, eles, curiosamente - como salienta Richard Kearney (filósofo irlandês) -, esquecem-se de perguntar quem é o sujeito desta frase de Jesus, quem constitui o «eu» de Jesus, quem é e onde está Jesus, o único mediador entre nós e o Pai.

Quem sou eu? Jesus responde a esta pergunta, mas apenas com aquela declaração: «Sempre que fizeste isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.»

Os mais pequeninos, os homens à margem (também à margem das Igrejas), os necessitados e os que sofrem indigência (não só social), os feridos (e não apenas no corpo) apontam o caminho fidedigno e exclusivo, não relativizável, para o Pai, a que é impossível esquivar-se.

Tomás Halík, in "O meu Deus é um Deus ferido"

Foto: Michael Belk


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

DEUS CHEIRA MAL


«Deus não se deixa encontrar só por aqueles que O procuram, mesmo aqueles que não O procuram Deus faz-se encontrar, Deus dá-se a ver. E Deus dá-se a ver onde? Antes de tudo, no encontro com o nosso irmão. Antes de tudo, no encontro com a vida nua, com a vida frágil, com a vida carente, com a vida necessitada. Antes de tudo é aí que Deus Se dá a ver, Se dá a tocar, é aí que Deus Se revela.

Às vezes Deus parece que está ausente, Deus está calado, Deus está silenciado na nossa vida porque simplesmente nós estamos a passar ao lado de Deus. E estamos à espera que Deus nos apareça limpinho, sublime, sobre as nuvens a cair e Deus está caído na rua, Deus tem piolhos, Deus cheira mal, Deus tem a vida desordenada, Deus merecia estar preso, Deus merecia estar excluído. Deus é assim, Deus não toma banho, Deus cheira mal, não cheira bem. Isto é, o encontro com Deus é o encontro com os últimos, é o encontro que só a misericórdia sustenta. Há um encontro com Deus que só a misericórdia sustenta e por isso nós temos de abrir o coração. É um desafio muito grande, este desafio ao cuidado da vida frágil, ao cuidado da vida pobre...

A religião é misericórdia. É preciso dizermos isso e nos convertermos a isso. Religião é misericórdia. Religião sem misericórdia não é religião... Porque Deus é amor, Deus é entranhas de misericórdia, vísceras de misericórdia.

E a misericórdia não é uma coisa teórica é, antes de tudo, a capacidade de sentir compaixão, sentir compaixão. Nós, por muitas razões, tornamo-nos duros de coração, desconfiamos do outro, achamos que o outro não merece, que não vale a pena, desistimos, descartamos. E a misericórdia é alguma coisa que aos poucos vai sendo declarada impossível na nossa vida. Porque nós vemos uma situação e levantamos logo isto, mais aquilo, mais aquele outro e a verdade é que passamos ao lado das situações em vez de nos envolvermos com elas...»

José Tolentino Mendonça

Foto: Desenho do meu caro amigo Agustin De La Torre


sábado, 5 de dezembro de 2020

O DEUS DAS PEQUENAS COISAS


"Deixar Deus falar em nós é uma coisa muito simples. Por vezes o nosso problema é que estamos agarrados às grandes ideias, aos grandes projetos, às coisas espetaculares quando Deus se dá nas coisas pequenas, quando Ele se manifesta naquilo que é até insignificante.

No fundo, o Deus que se revela na nossa vida é o Deus das coisas pequenas. Às vezes ficamos desconcertados, às vezes cega-nos a pequenez de Deus. Deus tem metro e meio, Deus, como diziam os monges budistas, “está num grão de arroz”, Deus está nas pequenas coisas, nos detalhes, no escondido da vida, no banal, naquilo que é mais próximo, naquilo que até nos repugna pensar que Deus possa estar contido naquilo.

Nós temos de sentir que Deus chega a nós no pequeno, no pequeno. Chega a nós no banal, naquilo que nós, em princípio, não damos importância. Mas Ele vai tocando à porta do nosso coração, Ele vai-Se manifestando, Ele vai-Se tornando presente se nós quisermos ver.

Às vezes nós recusamos e dizemos: “Não, Deus não está aí, só está o chato que tu és. Não, Deus não está aí só está este aborrecimento. Deus não está aí, só está a minha fadiga. Deus não está aí, só está esta coisa atordoante. Deus não está aí, só está a natureza, ou só está um dia de sol ou um dia de chuva. Deus não está aí, Deus está noutro lado.” E a verdade é que Deus está, a verdade é que Deus é em cada uma dessas coisas. Falta-nos um coração simples, um coração confiado para dizer: “Se Deus não está aqui, não está em mais nenhum lugar.”

A verdade é esta, se Deus não está aqui, nesta hora, neste momento da nossa vida não está em mais nenhum lugar. Qualquer que seja a situação que nós estamos a viver, qualquer que seja o nosso problema, ou a nossa esperança, se Deus não está nele, não está em mais nenhum lugar. Porque Deus é. Por isso, não pode haver interrupções para Deus, não podemos interromper a Sua presença. Ele chega-nos de uma forma abundante nas coisas pequenas. Por isso, a primeira bem-aventurança é: “Bem-aventurados os pobres de espírito.” Isto é, “Bem-aventurados aqueles que têm um coração de pobre porque verão a Deus.” Quem tem um coração pobre, quem tem um coração humilde vê a Deus. Vê a Deus muitas vezes ao longo do seu dia.»

José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A 2ª MILHA

 


«Se quiséssemos falar de Jesus a uma pessoa que não O conhecesse e só pudéssemos citar três frases Suas, que frases escolheríamos? Alguém, no outro dia, me deixou surpreendido ao escolher a seguinte frase:

“Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas“. (Mt 5, 41)

(...) Parece que, no tempo do Império Romano, oficiais do governo podiam obrigar qualquer pessoa a carregar um fardo por uma milha (quilómetro e meio, mais ou menos). Hoje é fácil contratar uma transportadora (se tivermos dinheiro) mas no tempo de Jesus e do Império Romano não seria assim tão fácil. Talvez fosse esta a situação que Jesus tinha em mente. Alguém com autoridade e cheio de malas podia dizer-nos “Requisito-te para vires comigo e me ajudares a carregar estas malas até à próxima aldeia”. Como reagimos?

A reação mais natural seria dizermos “vai pedir à tua tia!” ou inventarmos uma mentirazinha para nos esquivarmos ou então pegarmos nas malas com cara resignada sussurrando entre dentes que “manda quem pode”. (...)

A proposta de Jesus é que nos ofereçamos para carregar as malas não só até essa aldeia mas até à outra que fica a duas milhas de distância. (…)

Em geral, na vida, caminhar a 2.ª milha é ser capaz de gratuidade e de dar um passo para além daquilo que é o estritamente necessário, daquilo que é a nossa obrigação.

Caminhar a 2ª milha não é necessariamente fazer mais ou fazer o que for mais difícil fazer. Caminhar a 2.ª milha é uma atitude, um modo de fazer, que se reflete na entrega que pomos em tudo o que fazemos.

Resumindo: caminhar na 1.ª milha é fazer o que os outros pedem ou exigem ou o que eu sei que devo fazer. E, se o fizer, isso é ótimo! Mas caminhar a 2.ª milha é ir para além disso: é dar o melhor de mim. O olhar na 1.ª milha está posto nas obrigações; o olhar na 2.ª milha está posto no bem. (…)

Santo Inácio de Loyola falou e escreveu sobre isto muitas vezes. A ideia ficou consagrada nesta pequenina palavra latina: “MAGIS”. Ou seja: “mais”. (…)

“Devemos somente desejar e escolher o que MAIS nos conduz à finalidade para que somos criados”

Ou seja: para se ser cristão não basta tentar ser um bom cidadão e cumprir com todas as obrigações religiosas de modo a evitar qualquer pecado mortal. Para se ser cristão é preciso desejar ir mais longe e estar disposto a pagar o preço desse “mais”.

A 1.ª milha é muito importante, permite que as coisas funcionem. Mas é a 2.ª milha que lhes dá brilho e sabor.

É na 2.ª milha que a vida começa a ter mais cor. É aí que surge a liberdade interior e a criatividade. E é também nesta parte do percurso que conhecemos as pessoas mais interessantes, aquelas que não se movem por agradar aos outros ou simplesmente por cumprir as obrigações mas por ir ainda mais longe, depois de cumpridas todas as obrigações.

Entre as pessoas interessantes que podemos encontrar na 2.ª milha, a mais interessante é Jesus, o homem livre que nos aponta sempre saídas inesperadas e criativas para as situações da vida. Creio que é só na 2.ª milha que podemos começar a conhecer Jesus na intimidade.

Resta-nos desejar “MAIS” e pôr-nos no caminho da 2.ª milha.

Boa caminhada de Advento!»

P. Nuno Tovar de Lemos, sj, in Ponto SJ (adaptado)

Foto: Michael Belk

domingo, 29 de novembro de 2020

ADVENTO

 


"Advento, tempo de espera. Não apenas de um dia, mas daquilo que os dias, todos os dias, de forma silenciosa, transportam: a Vida, o mistério apaixonante da Vida que em Jesus de Nazaré principiou.

Advento, tempo de redescobrir a novidade escondida em palavras tão frágeis como "nascimento", "criança", "rebento".

Advento, tempo de preparar, mais do que consumir. Tempo de repartir a vida, mais do que distribuir embrulhos.

Advento, tempo de procura, de inconformismo, até de imaginação para que o amor, o bem, a beleza possam ser realidades e não apenas desejos para escrever num cartão.

Advento, tempo de dar tempo a coisas, talvez, esquecidas: acender uma vela; sorrir a um anjo; dizer o quanto precisamos dos outros, sem vergonha de parecermos piegas.

Advento, tempo de se perguntar: "há quantos anos, há quantos longos meses desisti de renascer?"

Advento, tempo de rezarmos à maneira de um regato que, em vez de correr, escorre limpidamente.

Advento, tempo de abrir janelas na noite do sofrimento, da solidão, das dificuldades e sentir-se prometido às estrelas, não ao escuro.

Advento, tempo para contemplar o infinito na história, o inesperado no rotineiro, o divino no humano, porque o rosto de um Homem nos devolveu o rosto de Deus."

José Tolentino Mendonça

Desenho do meu caro amigo Agustin de la Torre

sábado, 28 de novembro de 2020

A NOITE DO SAMARITANO


"Uma vez encontrei uma pintora que estava a trabalhar as parábolas de Jesus, e uma parábola que ela tratou no seu trabalho artístico foi a do Bom Samaritano. Ela depois designou a exposição “A noite do samaritano.” Porque ela disse: “Eu li muitas vezes a parábola do Bom Samaritano mas só ao fim de muito tempo é que eu descobri isto: o samaritano passou uma noite inteira junto daquele ferido, passou uma noite inteira a cuidar dele. Então, o que me interessa é tratar a noite do samaritano.” Isto é, aquela noite, aquele tempo longo, aquele gesto talvez desmesurado de amor, de compaixão pelo outro que ocupa a noite inteira. E ele, possivelmente, ficou em vigília toda aquela noite, cuidando do outro. Essa noite, a noite do samaritano é a noite de Deus na nossa vida. (...)".

No fundo, o grande desafio é tornarmos a nossa vida uma parábola de misericórdia, que a nossa vida seja uma parábola. Não tem de ser esta do Bom Samaritano, mas a nossa vida tem de ser uma história de misericórdia e tem que ter histórias de misericórdia.»

José Tolentino Mendonça

Imagem: "O Bom Samaritano", Rembrandt

 

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A IGREJA EM QUE ACREDITO (2ª parte)

"Acredito numa Igreja de Discípulos, aquela em que a atitude fundante de todas as opções e escolhas é a escuta orante e sem preconceitos da Palavra do Mestre, fonte permanente de Sabedoria, novidade e apelos de mudança. 

A Igreja dos Discípulos é aquela em que ninguém se considera superior a ninguém e as comunidades se estruturam de maneira fraterna. O único Mestre é Jesus Cristo e a única Sabedoria que se procura é a do Espírito Santo. 

Acredito numa Igreja de Profetas, na dinâmica comunitária daqueles que estão implicados na Palavra que proclamam e celebram, aqueles que assumem a totalidade das consequências da sua Fé, da sua Esperança e do seu Amor. 

A Igreja dos Profetas é aquela que dá à luz gente capaz de morrer por Cristo, é a Igreja indomável diante dos poderes do mundo, contexto comunitário de amadurecimento pessoal de homens e mulheres que não se deixam domesticar pelas “falinhas mansas” de todos os anti-evangelhos de rosto sedutor que por aí andam.

Repudio a igreja dos sacerdotes de templo. A igreja dos sacerdotes de templo é aquela em que os peritos do culto querem mandar e perceber mais que o Espírito Santo quando se trata da relação do Homem com Deus. O cumprimento das normas substitui facilmente a Verdade, os ritos ocupam o lugar do Amor e a função do sacerdote esgota toda a acção da comunidade.

Repudio a igreja dos fariseus, aqueles que se consideram a medida perfeita de Deus e dos Homens, os que se têm a si próprios como critério para falar de Deus e avaliar os outros.
Os fariseus são os que substituíram o Coração por uma régua, trocaram os olhos por microscópios, as mãos por algemas, e quando falam vemos-lhes a língua bifurcada dentro da boca, se estivermos atentos..."

Rui Santiago cssr

terça-feira, 24 de novembro de 2020

A IGREJA EM QUE ACREDITO (1ª parte)


"Acredito numa Igreja de Pecadores e Imperfeitos.

A Igreja dos Pecadores e dos Imperfeitos é aquela em que Deus tem espaço para ser Graça, e todos têm espaço para serem acolhidos sem se sentirem julgados.

A Igreja dos Pecadores e Imperfeitos é aquela em que as comunidades não conhecem divisões entre puros e impuros, aquelas em que, sem ingenuidades nem mediocridades, cada um é aceite tal como é e amado pela Verdade que procura no seu Coração. 

Acredito numa Igreja de Pobres e Pequenos, aqueles que são capazes de perceber que a Vida é a sua maior riqueza, os que não têm os dias sempre cheios demais para dar importância quotidiana à Palavra de Deus, os que não estão sempre a pensar no que podem ganhar ou perder em cada opção que haja a tomar.

A Igreja dos Pobres e Pequenos é aquela em que as comunidades não querem possuir nem dominar, onde cada um está disponível para partilhar com os outros o que tem, sabe e é. 

Os Pequenos são os que não precisam de ser grandes para se sentirem felizes, porque já têm maturidade suficiente para perceber que a única grandeza verdadeira é a do Coração, porque só essa é eterna. A verdadeira grandeza é aquela que engrandece os que estão ao lado.

Na Igreja dos Pobres e Pequenos todos são profundamente Ricos e Grandes, porque recupera-se o gosto pelas coisas simples e o maravilhamento pelas belezas não maquilhadas da Vida e da Criação. A Palavra de Deus e o Espírito Santo não deixam que se embruteça o Coração com a brutidade da presunção e da vaidade."

Rui Santiago cssr

Foto: mehdi_zavvar


quinta-feira, 19 de novembro de 2020

CONTARAM-ME...

 


contaram-me a história de um homem
que foi uma história de salvação
sem ter sido uma história de sucesso

negou a glória que o mundo dá
para afirmar a salvação que o mundo precisa

só podia salvar alguém
quem resistisse a salvar-se a si mesmo

a pedra mexeu
a pedra rolou
a estátua tombou
a Vida tomou conta de tudo

Rui Santiago cssr

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

LER PARA CRER

 

«Jesus – Um encontro passo a passo» - James Martin, sj *

Sobre o livro

“O jesuíta James Martin lança o desafio para que o leitor explore mais a vida de Jesus. Convida-o a encontrar o Jesus que estudou, o Jesus da sua fé, mas também o Jesus histórico que ele descobriu aquando da sua visita à Terra Santa.
O autor aborda apenas alguns acontecimentos da vida de Jesus que têm marcado a sua vida e que possam trazer algo de novo para a compreensão de Jesus. Trata-se do Jesus da experiência do autor, dos seus retiros espirituais, e também, do seu percurso de vida ao longo dos anos junto dos mais marginalizados da sociedade.

Podemos perceber, através das palavras do autor, qual é a intenção e propósito desta obra: 

 «Bem […] escreverei sobre aquele Jesus que encontrei na minha vida. Esse é um Jesus sobre o qual ainda ninguém escreveu». Isto pode assemelhar-se a ouvir um amigo contar-nos algo inesperado acerca de um amigo mútuo. «Eu não sabia isso acerca dele», poderá alguém dizer, pensativo. Ver um amigo através de outros olhos poderá ajudar-nos a apreciar mais essa pessoa. Poderemos acabar por compreender esse amigo de uma forma completamente nova. Assim, gostaria de convidar o leitor a conhecer aquele Jesus que já conhece, mas de uma forma nova. Ou, se não sabe muito acerca de Jesus, gostaria de lho apresentar. Acima de tudo, gostaria de apresentá-lo àquele Jesus que eu conheço e amo, à pessoa que ocupa o centro da minha vida. Chegar a conhecer Jesus, como chegar a conhecer qualquer outra pessoa, tem sido para mim uma verdadeira peregrinação. Parte dessa peregrinação foi uma viagem a Israel, uma viagem que mudou a minha vida.”
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Opiniões

«Este não é apenas um livro: é uma viagem. E uma viagem que teremos vontade de recordar, sempre.» 
(José Tolentino Mendonça)

«Muito acessível, convidativo – com atração magnética… Um livro profundo.» 
(Joan Chittister, OSB)

«A descrição de James Martin toca a nossa imaginação, incendiando-a de novo.»
(Timothy Radcliffe, OP, antigo Mestre-Geral dos Dominicanos)

«No total de 25 breves capítulos, escritos numa linguagem muito acessível em diálogo com o leitor, o autor parte de textos evangélicos e episódios da vida de Jesus, em chave de fascínio e atração.»
(Rui Pedro Vasconcelos, in revista Mensageiro de Santo António)
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Excerto

PARÁBOLA VIVA DA OVELHA PERDIDA

“Há quase vinte anos, trabalhei com o Serviço Jesuíta para aos Refugiados (SJR) em Nairobi, no Quénia. A minha função era ajudar os refugiados a iniciar pequenos negócios que lhes permitissem sustentar-se a si próprios e suas famílias. Certo dia, encontrava-me ao volante do meu jipe, fora da cidade, perto do vale Rift, para ir visitar um lavrador… Enquanto subia um íngreme desfiladeiro montanhoso, fiquei siderado a olhar para a erva verdejante que atapetava a encosta. De repente, aparentemente vinda do nada, uma ovelha branca solitária desceu a custo o monte e atravessou a correr à frente do meu carro. Guinei para evitar atropelá-la (não havia outros veículos por perto). Depois, fiquei a observar a ovelha descer cuidadosamente até ao vale, situado do lado direito da estrada.
Nesse preciso momento, uma figura atravessou rapidamente a estrada, vindo da minha esquerda. Era um jovem pastor maasai. Na cultura maasai, os rapazes mais novos cuidam das ovelhas, por vezes desde os cinco anos, os mais crescidos apascentam cabras, e os mais velhos, incluindo homens adultos, têm a seu cargo o gado bovino. O pastor atravessou a toda a velocidade diante do meu vagaroso jipe. Descalço e sorridente, acenou-me ao passar. Desceu com dificuldade a encosta do monte, perseguindo a ovelha, levantando nuvens de pó e chamando em voz alta, enquanto a procurava. Fiquei a observá-lo durante alguns segundos, enquanto ele descia o monte. A seguir, ergui o olhar e avistei o resto do rebanho, cerca de vinte ou trinta ovelhas, a subir o monte situado à minha esquerda.
“Que estúpido! – pensei. – Deixou para trás todo o rebanho só por uma ovelha.” Então fez-se luz no meu espírito, e desatei a rir em voz alta. Era a parábola da ovelha perdida, ao vivo!»
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*“JAMES MARTIN é jesuíta e editor-geral da revista America. Depois de se ter licenciado na Escola de Negócios da Universidade da Pensilvânia, James Martin trabalhou durante seis anos em Finanças, antes de entrar na Companhia de Jesus e cursar Filosofia e Teologia. Exerceu apostolado nos EUA, Jamaica e Quénia, entre as populações mais desfavorecidas, em particular com reclusos e refugiados políticos. Dotado contador de histórias, é autor de bestsellers galardoados e traduzidos em nove idiomas, além de presença frequente em universidades e meios de comunicação de larga audiência. Em Portugal, a Paulinas Editora publicou, das suas obras: Torna-te aquilo que és: Da imitação à autenticidade (2009).”

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

PARÁBOLAS DA VIDA


“Há quase vinte anos, trabalhei com o Serviço Jesuíta aos Refugiados (SJR) em Nairobi, no Quénia. A minha função era ajudar os refugiados a iniciar pequenos negócios que lhes permitissem sustentar-se a si próprios e suas famílias. Certo dia, encontrava-me ao volante do meu jipe, fora da cidade, perto do vale Rift, para ir visitar um lavrador (...) Enquanto subia um íngreme desfiladeiro montanhoso, fiquei siderado a olhar para a erva verdejante que atapetava a encosta. De repente, aparentemente vinda do nada, uma ovelha branca solitária desceu a custo o monte e atravessou a correr à frente do meu carro. Guinei para evitar atropelá-la (não havia outros veículos por perto). Depois, fiquei a observar a ovelha descer cuidadosamente até ao vale, situado do lado direito da estrada.
Nesse preciso momento, uma figura atravessou rapidamente a estrada, vindo da minha esquerda. Era um jovem pastor maasai. Na cultura maasai, os rapazes mais novos cuidam das ovelhas, por vezes desde os cinco anos, os mais crescidos apascentam cabras, e os mais velhos, incluindo homens adultos, têm a seu cargo o gado bovino. O pastor atravessou a toda a velocidade diante do meu vagaroso jipe. Descalço e sorridente, acenou-me ao passar. Desceu com dificuldade a encosta do monte, perseguindo a ovelha, levantando nuvens de pó e chamando em voz alta, enquanto a procurava. Fiquei a observá-lo durante alguns segundos, enquanto ele descia o monte. A seguir, ergui o olhar e avistei o resto do rebanho, cerca de vinte ou trinta ovelhas, a subir o monte situado à minha esquerda.
“Que estúpido! – pensei. – Deixou para trás todo o rebanho só por uma ovelha.” Então fez-se luz no meu espírito, e desatei a rir em voz alta. Era a parábola da ovelha perdida, ao vivo!

James Martin, sj, in "Jesus - Um Encontro Passo a Passo"

 

terça-feira, 10 de novembro de 2020

O DESAFIO MAIOR DE VIVER


"Todos os "amo-te" nos salvam da Morte, se tivermos vivido de maneira a saber recebê-los. Sempre que dizemos a alguém "gosto de ti", estamos a dizer-lhe "não morrerás". O desafio maior de Viver é construir qualquer coisa que, de tão bela e partilhada, não faça sentido deixar de existir. Construir a Vida é dar-lhe razões para existir sempre.

E "desafio" significa confiar e arriscar... E "construir" significa perguntar e experimentar... E "existir" é receber-se e dar-se, sem ser fonte de si mesmo. E, por isso, não creio que haja outro caminho para chegar a ser Feliz, senão tacteando estas veredas de um certo "não-saber" que, despojando-me das certezas absolutas, me liberta para receber a Vida em toda a sua Graça. Então, há momentos em que a cortina se entreabre um pouco, com a Dança que lá vai dentro, e podemos ter um vislumbre que nos dá Fome e Paz ao mesmo tempo, Sede e Ternura, Desejo e Consolação.

E se eu não fosse tão miserável nas coisas da matemática, poderia saber o que é equacionar a Vida segundo a Regra dos Três Simples. Mas, ainda que às apalpadelas, atrevo-me a rezar aos Três Simples: "Pai, Filho e Espírito Santo, ajudem-me a amar de tal maneira que descubra a Simplicidade salvadora inscrita no mais profundo de todos os dias, lá no centro da existência que é inspirada pelo vosso Mistério sereno e forte de Comunhão."

Rui Santiago cssr, in Derrotar Montanhas, 2013


 

sábado, 7 de novembro de 2020

LER PARA CRER



«Atravessar a própria solidão: chamamento à vida espiritual» - Carlos Maria Antunes*

Sinopse:

«Creio que não é possível nenhum caminho espiritual autêntico sem ser através da experiência da solidão e do silêncio. Não só o silêncio exterior, que é importante, mas fundamentalmente o silêncio interior, silêncio como vazio, como abertura. O silêncio que nos coloca em disposição da escuta para saber o que está no nosso interior, para descobrirmos que a nossa verdadeira identidade se desvenda na presença do Mistério de Deus que nos habita. Não há aqui nenhuma proposta de individualismo ou de intimismo. Pelo contrário: é uma proposta de busca do outro, de busca de Deus. Atravessar a própria solidão gera abertura e não fechamento. A solidão, tantas vezes experimentada como dor, quando atravessada, pode transfigurar-se em festa.»

«A Jesus nós chegamos pela exposição radical de nós mesmos. Ou, como recorda aqui, de forma tão profética, Carlos Maria Antunes, chegamos a Ele através da nossa solidão.» (José Tolentino Mendonça)
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Excertos:

"O acesso à nossa identidade mais profunda requererá sempre uma peregrinação. E, para o peregrino, ainda que parta movido pelo desejo da chegada, o próprio caminho ensinar-lhe-á que a densidade da peregrinação lhe será dada pelos passos dados, pela luta que supõe cada dia, quando as forças parecem esgotar-se… Reconhecerá que o importante na vida, mais do que chegar, é mesmo o caminho. Estar na vida como peregrinos ensina-nos a ser humildes, a assumirmo-nos como inacabados.

O mistério da nossa própria existência requer de nós, como do peregrino, fazermo-nos ao caminho, adentrarmo-nos no desconhecido, sempre com grande humildade. Face ao insondável que nos habita, não há outra forma. Somos beleza, beleza irrepetível, da qual não temos o direito de nos privarmos nem de privarmos os outros. Adentrarmo-nos na nossa solidão, como humildes peregrinos, ainda que alguns passos sejam especialmente duros, é o nosso mais original contributo para a grande sinfonia da vida, para a qual toda a criação está convocada. (…)

Quando nos decidimos a ir por dentro de nós é um sinal de que Deus nos precedeu com a sua graça e que, desde sempre, nos espera na nossa própria casa. Deus nunca se cansa de nos chamar à vida, a uma vida cheia, plena e, por isso, espera-nos incansavelmente. Tantas vezes tem de esperar por uma fratura para que a sua presença seja reconhecida! Ao decidirmos empreender esta viagem, dar-nos-emos conta de que grande parte da nossa vida a vivemos na superfície, a superfície da imagem, das crenças que fomos assimilando ao longo da vida, a superfície do nosso sistema defensivo, da nossa máscara… Dar-nos-emos conta de que há algo de irrealidade no nosso viver. Inclusivamente, aquele a quem chamamos Deus é, tantas vezes, um elemento mais deste nosso mundo artificial em que nos movemos, um deus pequenino, que cabe na nossa cabeça e que é controlável por nós. Quando nos damos conta da estreiteza do nosso horizonte, algo já se desmoronou, sabemos que já não queremos viver mais assim, no entanto, também não sabemos como sair do que em nós está tão solidificado. Diria que, aqui, nos encontramos num ponto cume da nossa solidão. É como se, de repente, tivéssemos perdido o mapa. As nossas mais profundas crenças sobre nós próprios, sobre Deus, sobre o mundo, manifestam-se frágeis, inconsistentes, com sabor a falso. E não sabemos como sair deste círculo vicioso. Pode ser uma experiência muito difícil, mas também cheia de oportunidades. Um verdadeiro Kairós (tempo denso de salvação)!"
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* Carlos Maria Antunes é presbítero e monge cisterciense no mosteiro de Santa Maria do Sobrado, na Galiza. Nascido em Tomar, foi durante década e meia pároco na diocese de Santarém. É autor dos livros "Atravessar a própria solidão" (2011) e "Só o Pobre se faz Pão" (2013), ambos editados pelas Paulinas.



quarta-feira, 4 de novembro de 2020

 


diante da vida
só o amor reúne
só o amor relembra a fonte
só o desejo inflama
só o desejo reza

secaram-nos os olhos
incendiados de imagens
mirrou-se o coração
que o fantasma da Moral habita
imunizou-nos o rito
de tanto o repetirmos

introduz-nos o Amor que ressuscita
nos átrios da vida invisível da carne
em que se revela a vida do amor na morte

no rio da graça entremos
a lavar os sentimentos e os olhos

só na história e na carne Deus se encontra
só na carne viva se manifesta o espírito

toque-nos a palavra
que nos faz viver com os outros e morrer por Deus

diante da Vida morte, vivamos
ressuscitados, perdoados
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José Augusto Mourão, in “O Nome e a Forma”

domingo, 1 de novembro de 2020

SANTIDADE

 


Desenho de Agustin de La Torre: https://agustindelatorre.com/


Um dia, vamos conhecer os verdadeiros santos de todas as religiões, credos, culturas, e de todos os ateísmos: os que viveram amando, no anonimato, sem nada esperar.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

"A PARTIR DE AGORA TUDO SERÁ DIFERENTE!"


«Houve uma altura na minha vida, já nem me lembro bem quando, em que comprei uma bicicleta de dois lugares.

Era linda… À frente um guiador fantástico, os travões, uma campainha, as mudanças… Uns pedais que se ajustavam na perfeição ao pé e uns rolamentos que pareciam manteiga… Atrás, uma outra espécie de guiador, mas que não “guiava”, claro, nem tinha travões, nem mudanças nem campainha. Era apenas um apoio para as mãos de quem fosse atrás. Mas tinha uns pedais e uns rolamentos iguais…

Montei-me nela e comecei a pedalar contente com a novidade da minha bicicleta. Passei pelo lugar do costume e encontrei-me com o amigo que me tinha feito comprá-la. Parei, pus o pé no chão e dei um “trim-trim” valente. Logo ele apareceu à janela, desviando a cortina com a mão, e riu-se de alegria e espanto com a minha surpresa.

Saiu, abraçámo-nos e disse-lhe: “Senta-te aí atrás! Esse lugar é para ti. A partir de agora pedalamos sempre juntos!”

Ele, de mochila às costas, como quem estava disposto a nunca mais me deixar, sentou-se no banco livre da minha bicicleta num pulo.

“A partir de agora tudo será diferente!”, foi o que eu disse, confiante e triunfante, ao mesmo tempo que dava a primeira pedalada e tirava o pé do chão.
Dirigi-me aos caminhos por onde costumava andar antes e mostrei-os todos a Jesus, montado no banco de trás da minha bicicleta.

Sentia que ele estava encantado com os caminhos por onde andávamos, “os meus caminhos”, assim lhes chamava eu, e sorria a cada novidade. Mas, ao mesmo tempo, parecia que “os meus caminhos” não eram novos para ele, como quem também já os tivesse percorrido…

As minhas mãos manejavam o guiador e conduziam-nos por todos os atalhos que eu conhecia bem desde a infância, caminhos que percorrera sozinho na minha bicicleta antiga mais de mil vezes! Pedalávamos contentes, ao mesmo tempo, e sentíamo-nos verdadeiramente felizes!

De repente, serpenteando pelos “meus caminhos”, Jesus começou a largar uma das mãos do seu suporte atrás de mim para me apontar veredas e ruelas que eu nunca tinha visto que estavam lá… Primeiro uma, depois outra… Ia-me apontando caminhos novos dentro dos “meus caminhos” que eu nunca reconhecera…

Andámos nisto muito tempo…
Entre a surpresa e a alegria, andámos nisto muito tempo…

E houve uma altura na nossa vida, já nem me lembro bem quando, em que ele pediu que parássemos.

Perguntei-lhe se estava cansado, e ele disse que não. Enquanto pedalávamos, por uns momentos mais devagar, ele disse-me por cima do ombro que era bom pararmos um bocado para pensarmos juntos onde havíamos de ir a seguir.

Sorri-lhe… Seria mesmo preciso?! Olhei para trás de relance e vi no seu rosto que sim. Tínhamos aprendido a conhecer-nos, e percebi que ele tinha coisas escondidas para me dizer…

Percebi depois. Queria dizer-me que havia mais caminhos para além dos “meus caminhos”.

Parámos à sombra de uma árvore, numa planalto já muito sereno e verde, e fechámos ambos um pouco os olhos, como que limitando-nos a respirar fundo. Quando, passado um pouco, lhe disse “Vamos continuar!”, fez-me um pedido inesperado: “Deixa-me ir à frente!”

Aquele “Deixa-me ir à frente” ecoou dentro de mim durante uma eternidade… Não era aquilo que eu tinha projectado quando comprei a bicicleta de dois lugares… Era suposto ser eu a ter nas mãos o guiador…

“Porquê?!”, perguntei-lhe eu… E ele sorriu e ficou só a olhar-me. Nos seus olhos vi reflectida num instante a História de Amizade que já tínhamos construído. Nunca me dera motivos para não confiar nele…

Meio a medo, mas com um entusiasmo diferente do primeiro, lá me sentei no banco de trás da minha bicicleta…
Ele sentou-se à frente, pôs o pé no pedal e, antes de arrancar, olhou para trás, piscou o olho e repetiu o que eu tinha dito na nossa primeira partida: “A partir de agora tudo será diferente!”

Fui a lugares que nem imaginava que pudessem existir, conduziu-me de bicicleta a topos de montanhas que eu achava impossível alcançar e de lá nos fez descer serenos sem nos perdermos nem magoarmos… Fez-me sentir cheiros que nenhuma palavra pode descrever e abriu-me os olhos para um mundo novo ao qual “os meus caminhos” ainda não davam acesso…

O medo e a desconfiança do princípio, debaixo da árvore, desapareceram com a experiência de liberdade e verdade profundas que ele me fazia saborear. Uma vez, enquanto atravessávamos uma enorme planície, perguntei-lhe por cima do ombro por onde andávamos. Fez um silêncio matreiro de suspense e respondeu-me: “Estes são os meus caminhos”!

Ri-me à gargalhada e, a meio do meu riso, disse: “Mas agora podes chamá-los também de teus”…

Aconteceram já tantas coisas desde que eu comprei a bicicleta nova e depois ele me pediu que o deixasse guiar… Nem com uma noite inteira de palavras contaria o que vivemos juntos. Além disso, as palavras ficam sempre tão pobres quando chega a altura de contar histórias destas…
Já lá vão uns anos, e continuo no banco de trás da minha bicicleta de dois lugares. Demorou mas percebi que era este o meu lugar! Nunca me senti tão feliz…

Quando, pelos dedos apontados de Jesus por cima do meu ombro, os “meus caminhos” foram dar “aos caminhos dele”, tudo começou a fazer sentido de uma maneira nova e profundamente plenificante.

De vez em quando eu ponho-me a olhar para trás ou para os lados com olhar vazio… Então, ele olha de relance para mim e, ao ver-me assim, dá um “trim-trim” valente para eu perceber para onde vamos. E o “vazio” desaparece… E o “lá atrás” torna-se longe e pequeno demais para que valha a pena lá voltar…

Um dia contei-lhe estas coisas todas e ele disse-me que se chamavam “Confiança”. E eu acreditei… Porque ele nunca me deu motivos para eu não acreditar...»

Rui Santiago cssr


 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

APRENDER A VIVER DE JESUS

 


"A vida de um cristão começa a mudar no dia em que ele descobre que Jesus é alguém que o pode ensinar a viver. Os relatos evangélicos nunca se cansam de apresentar Jesus como Mestre. Alguém que pode ensinar uma "sabedoria única". Essa sabedoria que tanto surpreende os seus vizinhos de Nazaré.

De facto, os primeiros que se encontraram com ele foram chamados "discípulos", alunos, ou seja, homens e mulheres dispostos a aprender com o seu Mestre Jesus.
Nós, cristãos de hoje, temos de nos perguntar se não esquecemos que ser cristãos é simplesmente "viver aprendendo " de Jesus. Ir descobrindo com ele qual é a forma mais humana, mais autêntica e mais feliz de enfrentarmos a vida.

Quantos esforços não são feitos hoje em dia para aprender como ter sucesso na vida: métodos para obter sucesso no trabalho profissional, técnicas para conquistar amigos, artes para sermos bem-sucedidos nas relações sociais. Mas onde podemos aprender a ser simplesmente humanos?

São bastantes os cristãos para quem Jesus não é de modo algum o inspirador da sua vida. Não conseguem ver que relação possa existir entre Jesus e a sua vida quotidiana. Jesus tornou-se uma personagem que eles pensam conhecer desde a infância, quando na realidade ele permanece para muitos o "grande desconhecido".

Um Jesus sem consistência real, incapaz de alegrar a sua existência quotidiana. E, no entanto, esse Jesus melhor conhecido e mais fielmente seguido, poderia transformar as nossas vidas. Não como o mestre distante que deixou um legado de sabedoria admirável à humanidade, mas como alguém vivo que, das profundezas do nosso ser, nos acompanha com paciência, compreensão e ternura.

Ele pode ser o nosso Mestre de vida. Pode ensinar-nos a viver, não para manipular os outros, mas para servir. Pode mostrar-nos que é melhor viver dando do que acumulando. Ouvindo a sua mensagem e seguindo os seus passos, podemos aprender a viver de uma forma mais solidária e menos egoísta, a arriscarmos mais por tudo o que é bom e justo, a amar as pessoas como ele as amava, a confiar no Pai como ele confiava."

José Antonio Pagola, in “O Caminho Aberto por Jesus – Marcos”

sábado, 24 de outubro de 2020

O QUE É QUE JESUS FARIA, AQUI E AGORA?


"A mais radical atitude de Fé em Jesus é segui-lo, tornar-se seu discípulo. Mais do que acreditar no que ele diz e se diz dele, é acreditá-lo com a própria vida e com o próprio seguimento."

Rui Santiago cssr
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"Imitar Jesus Cristo é uma opção de vida que exige um grande dinamismo. Supõe identificar-se com os critérios de Jesus e entrar no jeito de viver de Jesus, mas como pessoas do nosso tempo. Só conseguiremos ser verdadeiros imitadores de Jesus de Nazaré se formos pessoas livres e criativas.

Além disso exige uma grande atenção à Palavra de Deus e ao Espírito Santo que nos interpela no mais íntimo do nosso coração.

A fidelidade só é madura quando é criativa. Imitar Jesus é perguntar diante de cada situação: “O que é que Jesus faria, aqui e agora?” Esta pergunta só pode funcionar dentro de nós se formos pessoas fieis aos encontros com ele, assíduos no diálogo com Jesus e na meditação da Palavra de Deus. Se não existir em nós esse ritmo espiritual, as respostas que encontrarmos vão ser unicamente fruto da nossa imaginação ou projecções pessoais.

Para perguntarmos seriamente “O que é que Jesus faria, aqui e agora?” temos de prezar a convivência com Jesus e alimentar o fascínio por ele. Na verdade, nada nos assemelha mais a alguém do que a convivência com essa pessoa, e nada nos transforma mais que o fascínio por alguém.

Imitar Jesus Cristo não é uma questão teórica de adesão a doutrinas ou sistemas morais. Bem mais sério que tudo isso, implica uma opção de vida nova, pois não podemos ser fieis às interpelações do Espírito Santo se não estivermos disponíveis para acolher a novidade de Deus com as mudanças que isso implica.

Passar a viver pelo guião da vida de outro, esse tal Nazareno que anunciou um Deus que Reina, e viveu como súbdito tão fiel desse Reinado e filho tão amado desse Deus!

Se nos deixarmos conduzir pelo Espírito de Cristo, começamos a tomar uma série de atitudes que, sem serem uma cópia das de Jesus quanto ao modo, são idênticas às de Jesus quanto à dinâmica do amor libertador.

A imitação de Cristo, exercitada em cada dia da nossa vida, conduz-nos a uma grande maturidade cristã, o que implica uma profunda experiência da presença de Deus.

Imitar Jesus é caminhar no sentido de uma experiência de tipo familiar, tanto em relação a Deus como em relação às outras pessoas. O caminho da imitação de Cristo conduz-nos ao encontro de um homem cujo coração é o ponto de encontro da Humanidade com a Divindade, quer dizer, alguém em quem se exprime o melhor de Deus e o melhor do Homem."

Calmeiro Matias & Rui Santiago cssr


 

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Temer a Alegria é temer a Liberdade

 


"Temer a Alegria é temer a Liberdade. Toda a solenidade ritual de quem tem medo que a Alegria venha descompor toda a coreografia da religião, manifesta uma atitude de escravo contrária à Fé Filial que nos foi oferecida.

Quando vivemos mais atados pelas doutrinas
do que soltos pelo Evangelho,
mais cautelosos sob os mandamentos
do que pioneiros das Bem Aventuranças,
mais carregados com a disciplina da lei
do que leves com a ternura do Espírito,
mostramos que somos mais órfãos do que filhos,
mais “escravos dos elementos deste mundo”
do que membros ressuscitados do Corpo de Cristo!"

Rui Santiago cssr, in Estou em Crer, 2014




sábado, 17 de outubro de 2020

A PARTILHA É O SEGREDO DA ABUNDÂNCIA

 



Pai de Jesus e Pai Nosso:
com a delicadeza do Teu Espírito e a pontaria da Tua Palavra,
converte-me o coração à partilha.
Cura-me do medo de me dar.
Só quem se dá não se perde!

Rui Santiago cssr
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«O Evangelho não é para acomodados ou para aqueles que tem medo de fazer a travessia; o Evangelho é para fazer estrada, viver em atitude de saída. Sair dos lugares conhecidos, rotineiros, estreitos e abrir-nos às surpresas dos lugares novos.

Não basta ver a fome nas fotos, embora as fotos costumam “doer”. O importante é ver os rostos famintos. Jesus não é daqueles que, quando passa junto ao faminto, baixa os olhos para não ver. Jesus “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão”.

Jesus é daqueles que, quando descobre que a multidão tem fome, busca respostas, busca soluções. “Onde vamos comprar pão para que eles possam comer?”

A solução de Felipe é aquela que a maioria tem às mãos: só vê a dificuldade e, inclusive, a impossibilidade de encontrar uma saída para a situação. Ele recorda que o grupo não tem dinheiro. Entre os discípulos, todos são pobres: não podem comprar pão para tantos.

Jesus sabe disso. Os que têm dinheiro não resolverão nunca o problema da fome no mundo.

A dinâmica do mundo neoliberal é precisamente o dinheiro. Cremos que sem dinheiro nada se pode fazer e procuramos converter tudo em dinheiro, não só os recursos naturais, mas também os recursos humanos e os valores: o amor, a amizade, o serviço, a justiça, a fraternidade, a fé, etc.

Neste mundo capitalista nada é dado gratuitamente, tudo tem seu preço, tudo é taxado e comercializado. Esquecemos que a vida acontece por pura gratuidade, por puro dom de Deus.

É preciso algo mais que dinheiro. A solução de Jesus é abrir outra possibilidade: Ele vai ajudá-los a vislumbrar um caminho diferente. Antes de mais nada, é necessário que ninguém monopolize o seu alimento para si mesmo, quando há outros que passam fome. Seus discípulos terão que aprender a pôr à disposição dos famintos o que têm, mesmo que seja só “cinco pães de cevada e dois peixes”.

Jesus ensina que a dinâmica do Reino é a arte de compartilhar. Talvez todo o dinheiro do mundo não seja suficiente para comprar o alimento necessário para todos os que passam fome...O problema não se soluciona comprando, o problema se soluciona compartilhando.

O pão nas mãos de Jesus era pão para ser partido, repartido e compartilhado.

O pão armazenado, como o maná no deserto, se corrompe, apodrece.

Também, hoje, Ele precisa das nossas mãos para multiplicar os grãos; precisa das nossas mãos para triturar esses grãos, amassar a farinha e fazer o pão. E precisa de nosso coração para que o pão seja repartido.

O pão sem coração é pão “monopolizado”. Pão indigesto, que engorda o egoísmo.

O pão sem coração gera divisões e conflitos. Quantas guerras fraticidas provoca o pão sem coração!

Deus precisa do nosso coração para que o pão leve o sinal da fraternidade, seja vitamina de solidariedade, alimento de comunhão, para que possamos comungar.

No pão compartilhado, encontramos a luz da vida. “Se partes teu pão com o faminto... brilhará tua luz como a aurora” (Is. 58,7-8).

Nós seguidores(as) de Jesus, não devemos esquecer que o gesto de partilhar é a chave para tornar realidade a fraternidade e para nos reconhecermos como filhos e filhas do mesmo Pai. Quando se compartilha com gosto e com alegria, o alimento se multiplica e sobra.»

Rui Santiago cssr

Imagem: Agustin de la Torre - https://agustindelatorre.com/

domingo, 11 de outubro de 2020

REGRESSAR À GALILEIA



"Regressar à Galileia… não para “ficar”, mas para ser sempre enviado a partir de lá, a partir da convivência com Jesus, da realidade dos seus gestos e das suas palavras, com os pés assentes na terra que ele mesmo pisou…

Porque muitos dos que são tidos como discípulos de Jesus nunca foram à Galileia estar com ele! Nem nos damos conta, muitas vezes, mas acontece termos uma Fé de Niceia, de Constantinopla ou Calcedónia, uma fé feita de dogmas secos, especulativos, filosóficos, não pessoal nem relacional. A fé num “Cristo de laboratório” composto com as achegas de diversos teólogos do tempo e depois sempre recomposto pelos acrescentos dos teólogos posteriores que lhes seguem as pisadas.

Uma fé que produz Credos mas não faz acontecer o Reino de Deus. Formula dogmas, mas não inscreve Sabedoria nem o Fascínio de Jesus na Vida das pessoas…

Há também a fé de Trento, chamemos-lhe assim, e dos modelos cristológicos e eclesiais que lhe está na base, a invenção de um Cristo sacrificado por Deus como pagamento do preço que Lhe era devido pelos pecados da Humanidade, a heresia de uma “salvação” jurídica que ficava selada quando o Pai esmagava sob a Sua cólera a carne do Seu Filho e aplacava a Sua glória ofendida pelos nossos pecados quando lhe bebia a última gota de sangue pingado da cruz.

Maldita teologia que tanto desfigurou o Rosto de Deus e do Seu Cristo, que se tornou depois piedade, devoção e crença popular através de milhares de púlpitos, que gerou uma sociedade de escravos, sempre tão ao jeito dos poderosos de qualquer tempo…

O que está em causa é romper a fatalidade da impotência diante do mal, não pagar uma dívida devida a Deus! O que está em causa na vida de Jesus é abrir a possibilidade de uma realização plena para o ser humano, não pagar um castigo. O que está em causa é dar ao ser humano tudo o que Deus tem para nos dar como Graça, não dar a Deus tudo o que o ser humano lhe deveria dar como expiação.

Há uma coisa fundamental que nós, de cultura individualista, muitas vezes esquecemos: tudo o que Jesus viveu e tudo o que nele aconteceu, não vale somente para ele mas para todos. Por outras palavras: a Redenção que anunciamos não é uma teoria vaga, aérea, mas coincide com o mistério pessoal de Jesus de Nazaré e a acção de Deus nele. A Redenção não é uma “coisa” ou “ideia” mas uma pessoa, no processo concreto da sua existência. Por outras palavras ainda: a Redenção não é uma espécie de misticismo invisível mas, antes de tudo, a maneira concreta de Jesus viver!

A Redenção não foi um veredicto que caiu sobre a cabeça de Jesus a nosso favor. A Redenção não foi um momento de sacrifício e sofrimento que agradou a Deus e nos salvou o coiro a nós...

A Boa Notícia da Cruz não está naquela morte pecaminosa, mas naquela Fidelidade Incondicional e Invencível! Dom extremo feito por Jesus àqueles que se deixam envolver pela sua vida: a morte não tem a última palavra, e qualquer um que adere a ele, ama-o e se deixa por ele amar não morrerá eternamente!"

Rui Santiago cssr


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

LER PARA CRER



Hoje, é dia de inauguração de uma nova rubrica - "Ler para crer" - dedicada á divulgação de literatura cristã, nomeadamente, no domínio da espiritualidade, teologia, cristologia, etc.

Serão feitas recomendações/sugestões de livros que li e que considero relevantes para o crescimento/amadurecimento da fé e conhecimento de Jesus.

Quero abrir esta rubrica com chave de ouro, pelo que começo com um livro excepcional e um autor que admiro profundamente: “Jesus – Uma Abordagem Histórica” de José António Pagola*.

José Antonio Pagola, sacerdote e teólogo espanhol, é um homem apaixonado por Jesus. Os seus inúmeros escritos, cursos e conferência são seguidos por numerosos crentes e não crentes que querem conhecer a verdade sobre Jesus e a Boa Nova para a humanidade.

Antes de vos falar sobre o livro, gostaria de partilhar uma declaração do autor, que exprime a sua paixão, a sua fé e amor a Jesus e ao Seu Projeto de Vida:

“Na realidade, eu dou importância absoluta a Jesus e vivo dedicando-me para libertar a Sua Igreja daquilo que nos desvia do seu Evangelho ou nos impede de voltar a Ele. Para entender a minha vida de hoje e a minha mensagem, isto é o que eu mais trago no coração e é importante: eu quero contribuir com todas as minhas forças para voltar para Jesus. Para mim, isso é o mais decisivo que pode acontecer na Igreja nos próximos anos. Quero trabalhar de maneira humilde, mas firme, para que, na Igreja, vivamos colocando no centro, com mais verdade e fidelidade, a pessoa de Jesus, a Sua mensagem e o Seu projeto de abrir estradas para o reino de Deus. Isso significa voltar a quem é fonte e origem da Igreja, o único que justifica a Sua presença no mundo e na história; a única verdade que a nós, cristãos, nos é concedido viver. Isso significa, sobretudo, deixar que Deus encarnado em Jesus seja o único Deus da Igreja, o Abbá, o Deus da misericórdia, o Deus amigo da vida, o Pai defensor dos pobres." (José Antonio Pagola)
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“Jesus – Uma Abordagem Histórica” - José António Pagola

Recomendo a leitura desta magnífica obra sobre Jesus. O autor usou de perto o método histórico, analisando o contexto em que viveu Jesus, a cultura, a sociedade, os dados arqueológicos, a comparação com a vida social, cultural e religiosa daquele tempo, naquelas aldeias da Galileia e da Judeia.

Pagola parte da ambiência da fé, propondo a figura de Jesus para hoje, a partir de tudo o que ajuda a situar Jesus no seu tempo. Para os não-crentes, o livro pode revestir-se de uma informação séria sobre a figura de Jesus. Para os crentes pode ajudá-los a acolher Jesus, não romantizado mas encarnado, no tempo e na história, procurando sintonizar-se com o Seu proceder para que as respostas que damos hoje sejam mais cristãs e nos convertam em irmãos, para construir uma sociedade mais justa e fraterna.

É um livro com muitas páginas, mas que se lê com facilidade. A linguagem do autor é simples e acessível, mas rigorosa. O estilo é vivo, direto, de fácil compreensão.

Como refere Pagola, o livro nasceu da sua fé e amor a Jesus Cristo, e estimulado por essa mesma fé procurou narrar a história de Jesus de forma viva e significativa para os tempos atuais. Direciona o livro não apenas para os que se confessam cristãos, mas também para aqueles que ignoram a sua realidade ou aqueles que se afastaram ou desencantaram com a igreja e buscam caminhos alternativos de vida (p. 26- 27). A sua intenção é favorecer a aproximação histórica de Jesus “estudando sobretudo a lembrança que ele deixou nos seus” (p.19). E esta aproximação é contagiante: “É difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído pela sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial” (p. 22).

No seu livro, Pagola confere um importante lugar para as mulheres no movimento de Jesus. Foram verdadeiras “discípulas de Jesus”, estando presentes e atuantes desde a Galileia até Jerusalém. Elas “fizeram parte do grupo que seguia Jesus desde o início”. Algumas são nomeadas, como Maria de Mágdala, que ocupa um lugar de destaque, sendo sua melhor amiga (p. 280-281). O autor assinala a presença delas na última ceia e o seu lugar de destaque na fé pascal (p. 276-277).

A Deus, como Pai, Jesus dedica a sua oração nos momentos cruciais da sua caminhada. Jesus sempre se dirige a Deus como “Pai”, com quem partilha confiança e intimidade (p. 383 e 392). É o Pai do céu, que “não está ligado ao templo de Jerusalém nem a nenhum outro lugar sagrado. É o Pai de todos, sem discriminação nem exclusão alguma. Não pertence a um povo privilegiado. Não é propriedade de uma religião. Todos podem invocá-lo como Pai” (p. 392).

O tema do seguimento de Jesus entra no final, coroando com êxito a reflexão de Pagola. O que Jesus deixou atrás de si foi o projeto de dar continuidade ao seu sonho de fraternidade. Não “pensou numa instituição dedicada a garantir no mundo a verdadeira religião. Jesus pôs em marcha um movimento de “seguidores” que se encarregassem de anunciar e promover o Seu projeto do “Reino de Deus” (...). Por isso, não há nada mais decisivo para nós do que reativar sempre de novo, dentro da Igreja, o seguimento fiel à pessoa de Jesus” (p. 569).

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*José António Pagola é sacerdote e tem dedicado a sua vida aos estudos bíblicos, nomeadamente à investigação sobre o Jesus histórico. Nascido em 1937, é licenciado em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma (1962), licenciado em Sagradas Escrituras pelo Instituto Bíblico de Roma (1965), e diplomado em Ciências Bíblicas pela École Biblique de Jerusalém (1966).


INDAGAÇÕES SOBRE O CARPINTEIRO

“A árvore é força vertical da natureza, da terra em direcção ao céu. Tem a postura da espécie humana. Por isso o cego que Jesus curou em Bet...