«Exprimo aquilo que a maior parte dos homens sente obscuramente. Sim, entre as pessoas que conheci, as ocasiões que me foram oferecidas, as minhas intuições, existem semelhanças.
O que veio de fora encontra em mim um acordo com o que me foi ordenado de dentro: o eixo, a vocação, o dever, a razão de ser. E é este acordo entre exterior e interior que me dá não a impressão mas a certeza de que existe um Outro ligado a mim, certamente não para me corromper através da felicidade mas, pelo contrário, para me apoiar, para me elevar, para me fazer crescer graças aos obstáculos que doseia. (...)
Quando reflicto na relação destes acontecimentos com as minhas orações, apercebo-me de que a presença do Ser aumenta de densidade na medida em que me desinteresso, que renuncio a mim próprio e, como se diz agora, me esforço para me omitir. (...)
Se resolvo esquecer, confiar-me verdadeiramente ao Hospedeiro, encontro-o. É aqui que reconheço a eficácia do dom de si mesmo, da perda inteira de si mesmo. Quando esta perda é total, quando está ligada à felicidade, quando conhecemos a emoção triunfante do abandono, então somos senhores das coisas. E o acontecimento chega, imprevisto, surpreendente e gracioso.
Mas é muito difícil conseguir este abandono total. Somos sempre retidos por um cabelo, por um pequeno nada que se transforma em tudo. É a pobreza que produz riqueza, é o abandono que dá poder. Esta experiência, que fiz frequentemente ao longo da minha vida, de um vínculo entre o abandono de si mesmo e a chegada de circunstâncias favoráveis, creio que todos podem fazê-la e é uma prova singular, embora indizível, da existência desse Outro. (...)
É preciso dizer que a experiência é frequentemente dolorosa. Constato que o Outro se ocupa, sem cessar, a destruir o que eu creio desejar, para realizar o que eu quero mais profundamente do que desejo. Por estes seus atalhos que são, muitas vezes, o contrário do que eu teria escolhido, quebra os meus projectos - até ao dia em que o molde se partirá e eu verei o meu destino, em que saberei, por fim, o meu verdadeiro nome, o meu lugar no conjunto das coisas, o meu papel neste mundo: em resumo, tudo o que ainda ignoro e que sinto confusamente neste noite deliciosa a que chamamos a vida.»
Jean Guitton, em "As minhas razões de crer"
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2 comentários:
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