terça-feira, 29 de dezembro de 2020

DEUS CONNOSCO


«O Deus Connosco não aparece entre nós como um líder valente ou um chefe carismático que motiva em nós a vontade de lutar.

O Deus Connosco não aparece no meio de nós como alguém forte a provocar em nós a capacidade de obedecer.

O Deus Connosco aparece no meio de nós como alguém que quer provocar em nós a Sensibilidade, despertar o que há de mais íntimo em nós.

Deus vem visitar-nos para despertar em nós o carinho, a ternura, os sentimentos da nossa mais profunda humanidade.

Essa é a sua ideia… converter-nos, antes de tudo, à sensibilidade, à ternura, à doçura dos gestos, das palavras e das intenções.»
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Rui Santiago cssr

sábado, 26 de dezembro de 2020

A CRIANÇA É A MENSAGEM


A criança é a mensagem.
Um Deus que entra em nossa vida desde a meninice é o mais crente de nós.
Acredita em recomeços.
Tem fé nos reinícios.
Adere aos nossos renascimentos.
O bebé é Deus dizendo: «Faça como eu, recomece sempre que um novo início for a salvação.»
Ele não é o outro que vem a nós.
É o menino que vimos crescer.
Não chega. Nasce.
Não se impõe. Entrega-se.
Não reivindica. Serve.
Não esmaga. Mistura-se.
Conta histórias para contar-se entre nós...
Não intimida. Seduz.
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Elienai Cabral Junior


sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

NATAL: A história recomeça dos últimos


«O Natal não é uma festa sentimental, é o novo ordenamento de todas as coisas: Deus entra no mundo a partir do ponto mais baixo, para que ninguém fique abaixo dele, ninguém deixe de ser alcançado pelo seu abraço que salva. A história recomeça dos últimos.

Enquanto que em Roma se decidem as sortes do mundo, enquanto as legiões mantêm a paz com a espada, neste mecanismo perfeitamente oleado cai um grão de areia: nasce uma criança, suficiente para mudar a direção da história. A nova capital do mundo é Belém.

O Natal é o maior ato de fé de Deus na humanidade: confia o filho nas mãos de uma jovem inexperiente e generosa, tem fé nela. Maria cuida do recém-nascido, alimenta-o de leite, de carícias e de sonhos. Fá-lo viver com o seu abraço.

Do mesmo modo, na incarnação nunca concluída do Verbo, Deus só viverá na nossa Terra se cuidarmos dele, como uma mãe, a cada dia.

Por quê o Natal? Deus fez-se homem para que o homem se faça Deus. Cristo nasce para que eu nasça. O nascimento de Jesus requer o meu nascimento: que eu nasça diferente e novo, que nasça com o Espírito de Deus em mim.

O Natal é a "reconsagração" do corpo. A certeza de que a nossa carne que Deus assumiu, amou, fez sua, é sagrada em qualquer dos seus membros, que a nossa história é sagrada qualquer que seja a sua página.

O Criador que tinha plasmado Adão com a argila do solo faz-se Ele mesmo argila deste nosso solo. O oleiro faz-se argila de um vaso frágil e belíssimo. E ninguém pode dizer: aqui acaba o homem, aqui começa Deus, porque Criador e criatura abraçam-se a partir de agora. Para sempre.»
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P. Ermes Ronchi (adaptado)
Desenho: Agustin de la Torre



quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

UM SANTO E FELIZ NATAL!


«Se, nas nossas vidas, cada noite pudesse vir a ser como uma noite de Natal, uma noite iluminada, a partir de dentro…

Já não sabendo como fazer para ser compreendido, o próprio Deus veio à Terra, pobre e humilde: se Jesus Cristo não tivesse vivido no meio de nós, Deus permaneceria longínquo, inatingível. Pela sua vida, Jesus concede-nos a graça de ver Deus de forma transparente.»
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Irmão Roger, de Taizé, in "Viver em tudo a paz do coração"

 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

O VERBO DE DEUS


O Verbo de Deus, dito e feito,
é "o tal” chamado Jesus…
Dito e feito,
Palavra em forma de Pessoa,
Palavra que vem conjugar-se connosco.
Por isso lhe chamamos Verbo!

O Verbo de Deus: o Forte a conjugar-se no Débil
O Verbo de Deus: o Senhor a conjugar-se no Servidor
O Verbo de Deus: o Imenso a conjugar-se no Pequeno
O Verbo de Deus: o Divino a conjugar-se no Humano
O Verbo de Deus: o Inocente a conjugar-se no Réu

E já não há por onde pegar
nessas antigas divindades todas manientas de poder,
porque o Divino veio pôr-se à conversa connosco
em linguagem de meninos,
na roda de uma família em festa de primogénito
que nos irá ensinar a lição trazida das entranhas,
o dicionário da Vida e da Alegria
que começa na palavra “ABBA”, Papá.

A duração das antigas divindades expirou
na adoração ao Deus Novo que “o tal” Jesus nos inspirou.
Quem diria que a Era do Messias
havia de abrir-se com um Tempo de Ternuras?
Quem diria que as bandeiras ao vento do Reino Messiânico
seriam como roupa de criança a secar ao sol?
Quem diria que o que salva o mundo
é o Riso enorme de Deus,
a gargalhada que lança sobre nós,
toda fonte de surpresas e redenção.

O nosso Deus Ri!
Só um Deus que Ri se lembraria de salvar o mundo pela Ironia.
Essa Ironia chamada Jesus, “o tal” Messias
"Reis dos Reis e Senhor dos Senhores,
Príncipe dos Exércitos do Altíssimo”
que está ali, afinal,
todo ternura, no colo de sua mãe
que acabou de lhe dar a mama.
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Rui Santiago cssr (adaptado)


segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

MARIA FELIZ


«Estamos habituados a revoluções feitas com armas,
que deixam um fio de sangue a escorrer no chão…

Estamos habituados a confiar nas mudanças que são impostas pela força,
porque nos queixamos muito da violência mas é sempre a ela que recorremos
quando queremos que as coisas fiquem diferentes…

É por isso que o Evangelho ainda nos parece tão estranho, às vezes…
Porque nos conta a história de uma revolução feita de ternura.
Porque o Evangelho nos conta a mudança mais decisiva que foi introduzida no mundo,
mas é uma mudança selada pela mansidão e pela não-violência.

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
uma mulher que vivia numa aldeia pequenita da Galileia chamada Nazaré,
e ficou para sempre ligada à história que muda a história!
O nome dela era Maria
e foi da sua boca que nasceu o hino mais revolucionário que se tinha ouvido alguma vez.

Foi uma exultação de alegria,
porque há revoluções que nascem da Felicidade!
Foi um clarão de Esperança,
porque há revoluções que nascem de uma Promessa!

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
que sentiu a vida visitada pela bondade de Deus
e, por causa disso, abriu as portas e percorreu os montes.
Era uma vida d’esperanças, semeada de futuros,
e dentro de si uma Palavra ganhava corpo.

Foi ela quem ouviu a primeira Bem Aventurança do Evangelho:
“Feliz de ti que acreditaste que vai cumprir-se tudo o que foi dito da parte do Senhor!”
Por isso mesmo, ela cantou logo depois:
“De hoje em diante, todas as gerações me chamarão FELIZ!”

Era uma vez uma mulher, bonita que só ela,
que era uma pessoa feliz por causa da Esperança que Deus encontrou nela e por causa da Confiança que ela encontrou em Deus.

Voltamos o nosso rosto para Maria
porque queremos aprender dela a coisa mais importante de todas:
que Esperança é essa,
que Confiança é essa,
que faz de ti “Maria Feliz”?»
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Rui Santiago cssr, in Derrotar Montanhas

domingo, 20 de dezembro de 2020

"FAÇA-SE"


«Maria tem esta capacidade de escutar e acolher a vida, de ser visitada, de não viver com a porta fechada. Maria deixa-se visitar. Tem esta honestidade muito grande, esta exposição, e depois esta compreensão de que a vida não é apenas a realização da felicidade que eu pensei para mim próprio, mas que é a compreensão de que estou ao serviço de uma história maior, de uma história que me ultrapassa, e na qual o Espírito Santo me vai dar a força de participar, vai-me dar a competência de ser, colocando-me inteiramente ao serviço. (...)

E num “Sim” a história abre-se, a história reabre-se, torna-se o rio de Deus, a torrente por onde a Graça de Deus passa. Pedimos a Deus a força para cada um de nós dizer “Sim”, dizer “Faça-se”, dizer “Cumpra-se”. Porque é quando dizemos isso na nossa humildade – e ninguém é mais humilde do que Maria – “Sim, faça-se” que de facto há um rio transbordante de Graça, de vida, de entusiasmo, de uma forma que até nós não sabemos.
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Nós pensamos: Maria tinha consciência de tudo? Não, entregou-se, disse “Sim”. Que, do fundo da nossa vida, nós também possamos dizer “Sim” a este Deus que vem, que vem até nós e vem através de nós.»
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Cardeal D. José Tolentino Mendonça
Imagem: Ícone da Mãe do "Faça-se".

sábado, 19 de dezembro de 2020

GRÁVIDOS DE LUZ


Orígenes afirmou que a imagem mais plástica e potente do cristão é a de uma mulher grávida que caminha levando para o meio do mundo uma vida nova.

"Todos somos chamados a ser mães de Deus. Deus precisa sempre de vir ao mundo." (Mestre Eckhart)

"Maria grávida de Deus, percorrendo os montes de Judá, é a imagem mais potente que o Evangelho nos dá sobre o sentido e o fim da nossa vida. É uma metáfora prodigiosa. Ser grávidos de Deus, grávidos de luz, significa viver na presença. Não é preciso estar sempre a pensar em Deus, porque já está dentro de mim, como um filho no ventre materno. Sinto que cresce em mim uma espécie de certeza interior, porque existe em mim um depósito de ouro puro a consignar." (Simone Weil)

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

PALAVRAS? PERGUNTAS?


“Um Menino nasceu para nós! Um Filho nos foi dado”!

Que NOS fica de cada Natal celebrado?
São palavras? São perguntas? 

Nascem dos olhos, abertos, perspicazes… das notícias que magoam os ouvidos… das pontas dos dedos da Ternura… do Silêncio e dos gritos que se ouvem e… não calamos…

Nascem do Dom sempre inesperado… nascem da Gratidão… 

Nascem do espanto… do Milagre anunciado: 

“Um Deus que aceita fazer-se tempo irrompendo no mundo em meses estabelecidos com nascimento, morte e ressurreição” 

Menino sem lugar como tantos meninos “Nascesses hoje, e seria num barco de imigrados, atirado ao mar juntamente com a mãe, à vista da costa da Puglia, da Calábria”… 

Chegarias talvez num barco sírio empurrado até às loiras praias da ilha de Lampedusa, por 3 correntes contrárias - ganância, guerra, Esperança... Serias talvez desinfectado nu entre muitos num qualquer centro de “acolhimento”…

São palavras? São perguntas "para andar a girar na boca"? 

Em que caderno, em que bolso, em que gaveta nós as vamos arrumar? 

*Os excertos entre aspas saíram de um livro chamado “Caroço de Azeitona” de Erri de Luca
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Glória Marques
Desenho: Agustin De La Torre

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

JOSÉ


Estás em mim, ó Deus
Brilhas nas obscuras margens do meu nome
Ouves a canção dos meus anos,
que por vezes é pedra, por vezes acorde iluminado.

Que nunca o mundo me pareça um lugar indiferente.
Que a chama da Tua presença ilumine tudo por dentro
e eu não queira, não possa dizer outra coisa
senão a maravilhosa transparência onde Te contemplo.

Ao irmos e virmos, somos o Teu mapa
desfalecendo, mas retomando a marcha,
pois sabemos que no fundo desta massa informe
colocastes, Senhor, o irresistível desejo
que a todos faz gritar: “Vem!”
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José Tolentino Mendonça

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

POR BAIXO DE TODAS AS PLÁSTICAS


«Quero encontrar-te, amar-te e anunciar-te sempre, Jesus, para além de todas as plásticas, por baixo de todas elas (...)

Pintaram-te o cabelo de loiro, esticadinho e com uma risca ao meio, conseguiram dar-te olhos verdes ou azuis, empalideceram-te o rosto para ficares parecido com os modelos da nossa santidade medieval, adocicaram-te as formas todas…

Endeusaram-te as palavras de tal maneira que deixaram de ser verdadeiramente nossas e para nós, efeminaram-te o andar e os gestos vezes demais, tiraram-te força à voz e virilidade às opções…

Oh Jesus… Vezes demais a teologia te enxotou para o céu das divindades e a devoção te guardou numa caixinha sagrada! Queremos o Evangelho de volta, a Boa Notícia da tua presença re-suscitada, a experiência de que continuas a sentar-te à mesa para comer e beber connosco, continuas a passar por nós fazendo o bem, curando e libertando todos os oprimidos por aquilo que é mau.

E tenho a certeza que tu estás connosco. Tenho a certeza! Estás Vivo e estás connosco. Estás connosco com aquele jeito galileu que os pobres, os pequenos, os pecadores, os tristes, as crianças e os impuros conheciam muito bem…

Estás connosco assim, e de maneira plena, porque esse teu jeito de estar e amar foi re-suscitado, exaltado, confirmado e glorificado por Deus. Estás connosco assim, “galileu sem instrução”, como te acusavam, nazareno “que te fazes acompanhar de gente impura que não cumpre a Lei”, profeta surpreendente que “fala com autoridade e não como os doutores da Lei”, mestre que ensina os discípulos a sentarem-se em grupos e lhes diz que chegou a hora de partir o pão, repartir o farnel e experimentar o milagre da multiplicação e da abundância que gera Vida e Felicidade.

Estás connosco assim, dizendo sempre de novo “o Reino de Deus está próximo”, está aí, ao alcance, mesmo mesmo a acontecer no lado de dentro do tempo que passa e no mais íntimo das ações das pessoas tocadas pelo amor.»

Rui Santiago cssr (adaptado)

Foto: Michael Belk


sábado, 12 de dezembro de 2020

"Ninguém vem ao Pai a não ser por mim." (João 14:6)


"Esta é a frase de Jesus que os fundamentalistas cristãos e os «exclusivistas» citam com predileção. (...) No entanto, eles, curiosamente - como salienta Richard Kearney (filósofo irlandês) -, esquecem-se de perguntar quem é o sujeito desta frase de Jesus, quem constitui o «eu» de Jesus, quem é e onde está Jesus, o único mediador entre nós e o Pai.

Quem sou eu? Jesus responde a esta pergunta, mas apenas com aquela declaração: «Sempre que fizeste isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.»

Os mais pequeninos, os homens à margem (também à margem das Igrejas), os necessitados e os que sofrem indigência (não só social), os feridos (e não apenas no corpo) apontam o caminho fidedigno e exclusivo, não relativizável, para o Pai, a que é impossível esquivar-se.

Tomás Halík, in "O meu Deus é um Deus ferido"

Foto: Michael Belk


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

DEUS CHEIRA MAL


«Deus não se deixa encontrar só por aqueles que O procuram, mesmo aqueles que não O procuram Deus faz-se encontrar, Deus dá-se a ver. E Deus dá-se a ver onde? Antes de tudo, no encontro com o nosso irmão. Antes de tudo, no encontro com a vida nua, com a vida frágil, com a vida carente, com a vida necessitada. Antes de tudo é aí que Deus Se dá a ver, Se dá a tocar, é aí que Deus Se revela.

Às vezes Deus parece que está ausente, Deus está calado, Deus está silenciado na nossa vida porque simplesmente nós estamos a passar ao lado de Deus. E estamos à espera que Deus nos apareça limpinho, sublime, sobre as nuvens a cair e Deus está caído na rua, Deus tem piolhos, Deus cheira mal, Deus tem a vida desordenada, Deus merecia estar preso, Deus merecia estar excluído. Deus é assim, Deus não toma banho, Deus cheira mal, não cheira bem. Isto é, o encontro com Deus é o encontro com os últimos, é o encontro que só a misericórdia sustenta. Há um encontro com Deus que só a misericórdia sustenta e por isso nós temos de abrir o coração. É um desafio muito grande, este desafio ao cuidado da vida frágil, ao cuidado da vida pobre...

A religião é misericórdia. É preciso dizermos isso e nos convertermos a isso. Religião é misericórdia. Religião sem misericórdia não é religião... Porque Deus é amor, Deus é entranhas de misericórdia, vísceras de misericórdia.

E a misericórdia não é uma coisa teórica é, antes de tudo, a capacidade de sentir compaixão, sentir compaixão. Nós, por muitas razões, tornamo-nos duros de coração, desconfiamos do outro, achamos que o outro não merece, que não vale a pena, desistimos, descartamos. E a misericórdia é alguma coisa que aos poucos vai sendo declarada impossível na nossa vida. Porque nós vemos uma situação e levantamos logo isto, mais aquilo, mais aquele outro e a verdade é que passamos ao lado das situações em vez de nos envolvermos com elas...»

José Tolentino Mendonça

Foto: Desenho do meu caro amigo Agustin De La Torre


sábado, 5 de dezembro de 2020

O DEUS DAS PEQUENAS COISAS


"Deixar Deus falar em nós é uma coisa muito simples. Por vezes o nosso problema é que estamos agarrados às grandes ideias, aos grandes projetos, às coisas espetaculares quando Deus se dá nas coisas pequenas, quando Ele se manifesta naquilo que é até insignificante.

No fundo, o Deus que se revela na nossa vida é o Deus das coisas pequenas. Às vezes ficamos desconcertados, às vezes cega-nos a pequenez de Deus. Deus tem metro e meio, Deus, como diziam os monges budistas, “está num grão de arroz”, Deus está nas pequenas coisas, nos detalhes, no escondido da vida, no banal, naquilo que é mais próximo, naquilo que até nos repugna pensar que Deus possa estar contido naquilo.

Nós temos de sentir que Deus chega a nós no pequeno, no pequeno. Chega a nós no banal, naquilo que nós, em princípio, não damos importância. Mas Ele vai tocando à porta do nosso coração, Ele vai-Se manifestando, Ele vai-Se tornando presente se nós quisermos ver.

Às vezes nós recusamos e dizemos: “Não, Deus não está aí, só está o chato que tu és. Não, Deus não está aí só está este aborrecimento. Deus não está aí, só está a minha fadiga. Deus não está aí, só está esta coisa atordoante. Deus não está aí, só está a natureza, ou só está um dia de sol ou um dia de chuva. Deus não está aí, Deus está noutro lado.” E a verdade é que Deus está, a verdade é que Deus é em cada uma dessas coisas. Falta-nos um coração simples, um coração confiado para dizer: “Se Deus não está aqui, não está em mais nenhum lugar.”

A verdade é esta, se Deus não está aqui, nesta hora, neste momento da nossa vida não está em mais nenhum lugar. Qualquer que seja a situação que nós estamos a viver, qualquer que seja o nosso problema, ou a nossa esperança, se Deus não está nele, não está em mais nenhum lugar. Porque Deus é. Por isso, não pode haver interrupções para Deus, não podemos interromper a Sua presença. Ele chega-nos de uma forma abundante nas coisas pequenas. Por isso, a primeira bem-aventurança é: “Bem-aventurados os pobres de espírito.” Isto é, “Bem-aventurados aqueles que têm um coração de pobre porque verão a Deus.” Quem tem um coração pobre, quem tem um coração humilde vê a Deus. Vê a Deus muitas vezes ao longo do seu dia.»

José Tolentino Mendonça

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

A 2ª MILHA

 


«Se quiséssemos falar de Jesus a uma pessoa que não O conhecesse e só pudéssemos citar três frases Suas, que frases escolheríamos? Alguém, no outro dia, me deixou surpreendido ao escolher a seguinte frase:

“Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas“. (Mt 5, 41)

(...) Parece que, no tempo do Império Romano, oficiais do governo podiam obrigar qualquer pessoa a carregar um fardo por uma milha (quilómetro e meio, mais ou menos). Hoje é fácil contratar uma transportadora (se tivermos dinheiro) mas no tempo de Jesus e do Império Romano não seria assim tão fácil. Talvez fosse esta a situação que Jesus tinha em mente. Alguém com autoridade e cheio de malas podia dizer-nos “Requisito-te para vires comigo e me ajudares a carregar estas malas até à próxima aldeia”. Como reagimos?

A reação mais natural seria dizermos “vai pedir à tua tia!” ou inventarmos uma mentirazinha para nos esquivarmos ou então pegarmos nas malas com cara resignada sussurrando entre dentes que “manda quem pode”. (...)

A proposta de Jesus é que nos ofereçamos para carregar as malas não só até essa aldeia mas até à outra que fica a duas milhas de distância. (…)

Em geral, na vida, caminhar a 2.ª milha é ser capaz de gratuidade e de dar um passo para além daquilo que é o estritamente necessário, daquilo que é a nossa obrigação.

Caminhar a 2ª milha não é necessariamente fazer mais ou fazer o que for mais difícil fazer. Caminhar a 2.ª milha é uma atitude, um modo de fazer, que se reflete na entrega que pomos em tudo o que fazemos.

Resumindo: caminhar na 1.ª milha é fazer o que os outros pedem ou exigem ou o que eu sei que devo fazer. E, se o fizer, isso é ótimo! Mas caminhar a 2.ª milha é ir para além disso: é dar o melhor de mim. O olhar na 1.ª milha está posto nas obrigações; o olhar na 2.ª milha está posto no bem. (…)

Santo Inácio de Loyola falou e escreveu sobre isto muitas vezes. A ideia ficou consagrada nesta pequenina palavra latina: “MAGIS”. Ou seja: “mais”. (…)

“Devemos somente desejar e escolher o que MAIS nos conduz à finalidade para que somos criados”

Ou seja: para se ser cristão não basta tentar ser um bom cidadão e cumprir com todas as obrigações religiosas de modo a evitar qualquer pecado mortal. Para se ser cristão é preciso desejar ir mais longe e estar disposto a pagar o preço desse “mais”.

A 1.ª milha é muito importante, permite que as coisas funcionem. Mas é a 2.ª milha que lhes dá brilho e sabor.

É na 2.ª milha que a vida começa a ter mais cor. É aí que surge a liberdade interior e a criatividade. E é também nesta parte do percurso que conhecemos as pessoas mais interessantes, aquelas que não se movem por agradar aos outros ou simplesmente por cumprir as obrigações mas por ir ainda mais longe, depois de cumpridas todas as obrigações.

Entre as pessoas interessantes que podemos encontrar na 2.ª milha, a mais interessante é Jesus, o homem livre que nos aponta sempre saídas inesperadas e criativas para as situações da vida. Creio que é só na 2.ª milha que podemos começar a conhecer Jesus na intimidade.

Resta-nos desejar “MAIS” e pôr-nos no caminho da 2.ª milha.

Boa caminhada de Advento!»

P. Nuno Tovar de Lemos, sj, in Ponto SJ (adaptado)

Foto: Michael Belk

INDAGAÇÕES SOBRE O CARPINTEIRO

“A árvore é força vertical da natureza, da terra em direcção ao céu. Tem a postura da espécie humana. Por isso o cego que Jesus curou em Bet...