segunda-feira, 15 de março de 2021

INDAGAÇÕES SOBRE O CARPINTEIRO


“A árvore é força vertical da natureza, da terra em direcção ao céu. Tem a postura da espécie humana. Por isso o cego que Jesus curou em Betsaida descreve os homens, ao vê-los pela primeira vez, como árvores que caminham. É a mais bela impressão física do corpo humano e é lógico que venha de um cego, porque os cegos são visionários.

Para compreender os carpinteiros é preciso adentrar-se no bosque, disfrutar da sua sombra, tropeçar nas muitas raízes e ouvir o cântico coral. (…) Aqui aparecem as árvores, com a mesma força e exultação das criaturas perante o seu Criador.

Nós, os modernos, costumamos mostrar indiferença pela matéria-prima e render culto ao produto acabado. Estamos habituados a pagar barata a fonte e caro o resultado. A Escritura Santa faz contas às árvores, à madeira e ao trabalho humano. (…)
Ele é carpinteiro, especialista em árvores e em cortes, construtor de móveis para a comunidade. Jesus nasce num estábulo, mas cresce na oficina de um artesão. (…)
A verdade é que Jesus percorreu de princípio a fim a instrução que leva de aprendiz a mestre durante os anos eternos da infância e da adolescência. O seu corpo cresceu debaixo da disciplina do trabalho manual. (…)

Na oficina de Yosef não lhe faltou nenhuma lição, nem sequer a das marteladas nos dedos. Cravou milhares de cravos e pregos até conseguir enfiá-los com três golpes certeiros sem necessidade de olhar para a cabeça onde havia de bater, prova bem conhecida da destreza em todas as carpintarias.

Carregou até ao Gólgota a árvore do patíbulo, e estava já identificado com ela.
Quando lhe entraram na carne os cravos, ao senti-los entrar, encontrou-se, pela primeira vez no lugar da madeira. Conhecia bem aqueles golpes, o som do ferro, o rasgão que se segue a cada martelada. Tinha deixado para trás tudo aquilo que agora voltava a encontrar. Vinha-lhe a imagem de Yosef que deixara entregue à sua velhice. Talvez já tivesse vendido as ferramentas e a oficina ao ver-se sem sucessor. Tocava-lhe a ele, Jesus, terminar como um madeiro estendido e bem preso, a sua vida era uma matéria-prima. A docilidade da madeira e a sua.

Não era como uma árvore que caminha, como dissera o cego de Betsaida. Ele estava plantado no chão e todos os seus passos terminavam ali com os pés juntos e os braços estendidos como ramos.

O Gólgota é um monte nu, sem vegetação. No cimo ergue-se agora um homem árvore, a esvair-se em sangue.

O vento sobre o Gólgota vinha de bosques distantes, carregado de cânticos.
Assim, enquanto se consumia o dia mais breve da sua vida, nas narinas entrava-lhe, como uma anestesia, a essência da resina, a ferida da árvore misturava-se com o sangue e os últimos suspiros voltavam aos bosques perfumados. Por isso sorriu e deixou cair a cabeça para o lado, sobre o ombro, lançando a última expiração com um forte estrondo como se fora a folhagem de uma árvore abatida.
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Erri De Luca, in “Penúltimas palavras acerca Yeshua/Jesus”

Tradução de Glória Marques

Foto:Michael Belk


quinta-feira, 11 de março de 2021

VOLTAR A JESUS


"Recentemente, um jovem perguntou-me que mudança eu queria ver na nossa sociedade. A minha resposta deixou-o surpreso. Disse que desejo que uma certa categoria de cristãos, em particular aqueles nos círculos internos da Igreja, mudem a maneira de ver a sua fé. Suspeito de que muitos católicos estão sofrendo pela exaustão, pela falsificação e pela banalização da nossa fé em Cristo!

Nenhum estudo científico é necessário para concluir que muitas pessoas batizadas estão a abandonar a religião. A nossa comunidade religiosa está a transformar-se numa comunidade de cabelos brancos! Aqueles que abandonam a Igreja não são desfavorecidos de inteligência. Também não são contrários ao fenómeno religioso. Eles simplesmente perderam o interesse ou sentem-se afastados porque nos veem "brincando de Igreja". É a forma como apresentamos o Evangelho, celebramos a nossa liturgia e, também, a nossa incoerência flagrante que faz com que as pessoas se sintam espiritualmente enganadas.

Hoje em dia, muitos filósofos confirmam que o desejo religioso é um facto antropológico que pode tomar muitas formas, mas que não pode ser erradicado. Para mim, isso confirma que existe um desejo implícito de conhecer a Cristo no coração de cada homem.

O homem contemporâneo ainda tem sede de fé, mas talvez tenha menos de religião. Devido ao seu desencantamento em assuntos que dizem respeito à fé, o homem moderno prefere percorrer um caminho diferente. Ele tem uma nova forma de ver o mundo e nós, enquanto Igreja, ainda estamos agarrados a uma visão obsoleta.

Precisamos ajudar o homem a descobrir a autenticidade original da fé cristã, precisamos ajudá-lo a dar o salto de uma religião de conveniência para uma religião de convicção; de uma religião cheia de leis a uma religião que nos dá o gosto da verdadeira liberdade; de uma religião de rituais vazios para uma religião que nos abre para o mistério.

É válido admirar a magnífica história da Igreja, mas não podemos continuar a gastar a nossa energia numa tradição que pode ter embaçado a nossa visão daquilo Cristo propõe.
Neste contexto, as palavras de Marcel Gauchet vêm à mente. Ele diz que o cristianismo "é a religião do fim da religião".

Os Evangelhos confirmam a tese de Gauchet de que o cristianismo deve trazer ao fim um certo tipo de religião. Foi isto que Cristo fez. Ele criticou flagrantemente certas práticas religiosas. Ele afirmou que o homem vem antes da lei! Ele deu um novo centro a uma religião que estava focada em sacrifícios: o amor (Mc 12, 33). Ele falou sobre a necessidade de derrubar o templo de Jerusalém para ele construí-lo novamente (Jn 2, 19).

Tudo isso serve para mostrar que o desafio que a Igreja está enfrentando é interno. Temos de trazer ordem à nossa própria casa para não corrermos o risco de acabar com um corpo sem alma. O adversário da nossa fé cristã não é o ateísmo, o secularismo ou o anticlericalismo, mas a nossa atual religiosidade cristã. Estamos tão cheios da nossa própria espiritualidade e de nós mesmos que deixamos pouco ou nenhum espaço para Cristo."
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Mario Grech, bispo de Gozo (Malta), in The Malta Independent, 15-04-2018. (adaptado)


domingo, 7 de março de 2021

NÃO FAÇAIS DA VIDA UM MERCADO


«Jesus de chicote na mão. Imprevisível. Mas sabem o que é que me toca e me comove em Jesus? Impressiona-me o facto de nele haver ao mesmo tempo a doçura e a ternura de uma mulher enamorada e a coragem, a determinação e a força de um herói em combate.

Jesus não é subserviente! Sabe dizer firmemente não, quando é preciso. (…)

Uma graça, este Cristo exigente que repete a cada um: não façais da fé um mercado, não façais da vida um mercado. Não useis, com Deus, a lei decadente da troca direta, em que tu dás alguma coisa a Deus para que Ele te retribua com uma outra.

Por vezes pensamos que indo à Igreja, cumprindo esse gesto, acendendo aquela vela, dizendo aquela oração, fazendo aquela oferta, estamos bem, já cumprimos o nosso dever, já demos e, agora, podemos esperar alguma coisa em troca.

Desse modo transformamo-nos em cambistas, e Jesus derruba a nossa banca. Se pensamos envolver Deus nos nossos jogos comerciais, temos de mudar de mentalidade: Deus não se compra, e é de todos. Não se compra sequer pelo preço da moeda mais pura.

«Fizestes da casa de Deus uma casa de comércio!», um mercado: é a acusação de Jesus. E eu interrogo-me: mas qual é a casa de Deus? Este templo lindíssimo com os seus ouros? Não, a casa mais verdadeira de Deus é a nossa vida. O templo somos nós. (…)

Então, o grito de Jesus passa a ser: não façais da vida um mercado! Não a reduzais ás leis da economia e do dinheiro. Não façais da vida um mercado, não a submetais à lei do dinheiro. Nem a outras leis: a lei do mais forte, do mais astuto, do mais violento.

Estas leis erradas estão na vida do homem como as ovelhas e os bois no templo de Jerusalém: profanam-na, sujam-na. São para a manada, para o rebanho, mas não para os filhos de Deus, na sua liberdade. Devem estar fora, fora de casa de Deus que é o homem.

Não contamineis o homem, não o profaneis! Profanar o homem é o pior sacrilégio que se pode cometer, sobretudo se ele é débil e indefeso, se é criança. O mais santo templo de Deus. (…)

Jesus quer instaurar a religião da interioridade – lembrem-se de Santo Agostinho: «Fora de mim te procurava e Tu estavas dentro de mim» -, leva-a à plenitude pelo caminho do coração. E alcança-nos na vida de todos os dias, no seu templo frágil, maravilhoso e incomensurável.

E mesmo que uma vida valha pouco, nada vale tanto como uma vida. Se pudéssemos caminhar dentro do mundo como dentro de um santuário imenso, e caminhar na direção das pessoas, vendo-as como um templo, então cada passo seria um passo para Deus, um passo dentro de Deus.»

Ermes Ronchi

sexta-feira, 5 de março de 2021

LER PARA CRER - Proposta de leitura para a Quaresma


"SÓ O POBRE SE FAZ PÃO" - Carlos Maria Antunes

Sinopse

Carlos Maria Antunes revela-nos o profético desafio de uma "mística de olhos abertos", um itinerário espiritual acessível a todos e apropriado aos tempos que correm. Mas revela-se também como um grande autor, com uma voz original e própria, que constituirá uma grata surpresa para cada leitor. Escutemo-lo: "É necessário que se desmoronem as muralhas da autossuficiência para que possamos descobrir que somos dom e graça, que somos pão. Só o coração pode reconhecer o dom que somos e este é o alimento que efetivamente nos sacia, que rompe com a espiral devoradora das necessidades. Há uma arte de viver em conjunto que o pão partilhado nos ensina. É uma arte frágil, delicada, onde todos somos principiantes.

Excertos

DEIXAR-SE LEVAR

"Há um passo importante no nosso itinerário para Deus: deixar-se levar. As experiências que acompanham a maturidade na fé reconduzem-nos sempre à infância.
Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais captamos o sentido dos gestos simples que brotavam espontaneamente em nós quando éramos crianças. Por exemplo: dar a mão e deixar-se levar. (...) Aprendemos a caminhar pela vida, assim, de mão dada, levados por outro, sem medo, com a alegria de ser amado.»
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PEREGRINOS

«Seduz-nos tanto o futuro programado e garantido, como se tudo dependesse de nós. E vamos dizendo: «mais vale um pássaro na mão do que dois a voar». O que não nos damos conta é que, ao não aceitar a provisoriedade própria da vida, nos fechamos à possibilidade do novo, do revelado, do inesperado. Cercamos a vida nos limites dos próprios «celeiros» que vamos construindo.(...)
Viver implica um grande desapego face à própria vida. Só se vive intensamente quando se está consciente que a qualquer momento podemos partir. Não podemos esquecer a nossa condição de peregrinos; e estes não constroem «celeiros», levam apenas uma pequena mochila com o mais essencial para a viagem».
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MORALISMO

«O moralismo é uma das piores ameaças a uma sã espiritualidade. Não deixa espaço à indagação, fecha todas as possibilidades de descoberta, destrói a autonomia e a consequente liberdade do sujeito, pois apresenta-se a priori como uma sentença definitiva, interiorizada acriticamente como reflexo de um determinado contexto cultural.
Deveríamos ser mais perscrutadores atentos da vida do que catalogadores. Somos movimento, somos fluir, somos alternância. Somos gente em acontecimento. Temos ainda para aprender uma suavidade no olhar sobre nós próprios e sobre os outros».
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SOBRE O AUTOR

Carlos Maria Antunes é presbítero e monge cisterciense no mosteiro de Santa Maria do Sobrado, na Galiza. Nascido em Tomar, foi durante década e meia pároco na diocese de Santarém. É autor dos livros "Atravessar a própria solidão" (2011) e "Só o Pobre se faz Pão" (2013), ambos editados pelas Paulinas.


quarta-feira, 3 de março de 2021

A CRUZ É OUTRA COISA


"É difícil não sentir desconcerto e mal-estar ao ouvir mais uma vez as palavras de Jesus: “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Entendemos muito bem a reação de Pedro que, ao ouvir Jesus falar de rejeição e sofrimento, “o toma à parte e se põe a censurá-lo”.

Diz o teólogo mártir, Dietrich Bonhoeffer, que esta reação de Pedro “prova que, desde o princípio, a Igreja se escandalizou do Cristo sofredor. Ela não quer que o seu Senhor lhe imponha a lei do sofrimento”.

Este escândalo pode tornar-se hoje insuportável para nós que vivemos no que Leszek Kolakowsky chama “a cultura de analgésicos”, essa sociedade obcecada por eliminar o sofrimento e mal-estar através de todo tipo de drogas, narcóticos e evasões.

Se quisermos esclarecer qual deve ser a atitude cristã, temos que compreender bem em que consiste a cruz para o cristão, pois pode acontecer que nós a ponhamos onde Jesus nunca a pôs.

Facilmente chamamos “cruz” a tudo aquilo que nos faz sofrer, inclusive esse sofrimento que aparece na nossa vida, gerado pelo nosso próprio pecado, ou pela nossa maneira equivocada de viver. Mas não devemos confundir a cruz com qualquer desgraça, contrariedade ou mal-estar que acontece na vida.

A cruz é outra coisa. Jesus chama os seus discípulos para segui-lo fielmente e colocar-se a serviço de um mundo mais humano: o Reino de Deus. Isto é o principal. A cruz é apenas o sofrimento que nos virá como consequência desse seguimento; o destino doloroso que teremos de compartilhar com Cristo, se seguirmos realmente os seus passos. Por isso, não devemos confundir o “carregar a cruz” com posturas masoquistas, uma falsa mortificação, ou o que P. Evdokimov chama “ascetismo barato” e individualista.

Por outro lado, devemos entender corretamente o “renunciar a si mesmo”, condição que Jesus pede para carregar a cruz e segui-lo. “Renunciar a si mesmo” não significa mortificar-se de qualquer maneira, castigar-se a si mesmo e, menos ainda, anular-se ou autodestruir-se. “Negar-se a si mesmo” é não viver dependente de si próprio, esquecer-se do próprio “ego”, para construir a vida sobre Jesus Cristo. Libertar-nos de nós mesmos para aderir radicalmente a Ele.

Por outras palavras, “carregar a cruz” significa seguir a Jesus dispostos a assumir a insegurança, a traição, a rejeição ou a perseguição que o próprio Crucificado teve que padecer.

Mas nós crentes não vivemos a cruz como derrotados, mas como portadores de uma esperança final. Todo aquele que perde a sua vida por Jesus Cristo encontrá-la-á. O Deus que ressuscitou Jesus ressuscitar-nos-á também para uma vida plena.»
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José Antonio Pagola

Foto: Michael Belk

INDAGAÇÕES SOBRE O CARPINTEIRO

“A árvore é força vertical da natureza, da terra em direcção ao céu. Tem a postura da espécie humana. Por isso o cego que Jesus curou em Bet...