«Atravessar a própria solidão: chamamento à vida espiritual» - Carlos Maria Antunes*
Sinopse:
«Creio que não é possível nenhum caminho espiritual autêntico sem ser através da experiência da solidão e do silêncio. Não só o silêncio exterior, que é importante, mas fundamentalmente o silêncio interior, silêncio como vazio, como abertura. O silêncio que nos coloca em disposição da escuta para saber o que está no nosso interior, para descobrirmos que a nossa verdadeira identidade se desvenda na presença do Mistério de Deus que nos habita. Não há aqui nenhuma proposta de individualismo ou de intimismo. Pelo contrário: é uma proposta de busca do outro, de busca de Deus. Atravessar a própria solidão gera abertura e não fechamento. A solidão, tantas vezes experimentada como dor, quando atravessada, pode transfigurar-se em festa.»
«A Jesus nós chegamos pela exposição radical de nós mesmos. Ou, como recorda aqui, de forma tão profética, Carlos Maria Antunes, chegamos a Ele através da nossa solidão.» (José Tolentino Mendonça)
---------------------------------------------------------------------------Excertos:
"O acesso à nossa identidade mais profunda requererá sempre uma peregrinação. E, para o peregrino, ainda que parta movido pelo desejo da chegada, o próprio caminho ensinar-lhe-á que a densidade da peregrinação lhe será dada pelos passos dados, pela luta que supõe cada dia, quando as forças parecem esgotar-se… Reconhecerá que o importante na vida, mais do que chegar, é mesmo o caminho. Estar na vida como peregrinos ensina-nos a ser humildes, a assumirmo-nos como inacabados.
O mistério da nossa própria existência requer de nós, como do peregrino, fazermo-nos ao caminho, adentrarmo-nos no desconhecido, sempre com grande humildade. Face ao insondável que nos habita, não há outra forma. Somos beleza, beleza irrepetível, da qual não temos o direito de nos privarmos nem de privarmos os outros. Adentrarmo-nos na nossa solidão, como humildes peregrinos, ainda que alguns passos sejam especialmente duros, é o nosso mais original contributo para a grande sinfonia da vida, para a qual toda a criação está convocada. (…)
Quando nos decidimos a ir por dentro de nós é um sinal de que Deus nos precedeu com a sua graça e que, desde sempre, nos espera na nossa própria casa. Deus nunca se cansa de nos chamar à vida, a uma vida cheia, plena e, por isso, espera-nos incansavelmente. Tantas vezes tem de esperar por uma fratura para que a sua presença seja reconhecida! Ao decidirmos empreender esta viagem, dar-nos-emos conta de que grande parte da nossa vida a vivemos na superfície, a superfície da imagem, das crenças que fomos assimilando ao longo da vida, a superfície do nosso sistema defensivo, da nossa máscara… Dar-nos-emos conta de que há algo de irrealidade no nosso viver. Inclusivamente, aquele a quem chamamos Deus é, tantas vezes, um elemento mais deste nosso mundo artificial em que nos movemos, um deus pequenino, que cabe na nossa cabeça e que é controlável por nós. Quando nos damos conta da estreiteza do nosso horizonte, algo já se desmoronou, sabemos que já não queremos viver mais assim, no entanto, também não sabemos como sair do que em nós está tão solidificado. Diria que, aqui, nos encontramos num ponto cume da nossa solidão. É como se, de repente, tivéssemos perdido o mapa. As nossas mais profundas crenças sobre nós próprios, sobre Deus, sobre o mundo, manifestam-se frágeis, inconsistentes, com sabor a falso. E não sabemos como sair deste círculo vicioso. Pode ser uma experiência muito difícil, mas também cheia de oportunidades. Um verdadeiro Kairós (tempo denso de salvação)!"
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* Carlos Maria Antunes é presbítero e monge cisterciense no mosteiro de Santa Maria do Sobrado, na Galiza. Nascido em Tomar, foi durante década e meia pároco na diocese de Santarém. É autor dos livros "Atravessar a própria solidão" (2011) e "Só o Pobre se faz Pão" (2013), ambos editados pelas Paulinas.
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