sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

DIÁRIO DE ETTY HILLESUM (5ª parte)

Etty Hillesum

«Para mim, as pessoas são muitas vezes como casas com as portas abertas. E eu entro e vou deambulando pelos corredores e pelos quartos, e cada casa tem por sua vez uma decoração um pouco diferente e no entanto todas elas são parecidas. E cada casa deveria transformar-se numa morada sagrada para ti, meu Deus. E prometo-te, prometo-te procurar no maior número de casas possível morada e acolhimento para ti, meu Deus.
É realmente uma imagem engraçada. Meto-me a caminho e vou à procura de abrigo para ti. Há tantas casas vazias por aí, vou trazê-las até ti, o hóspede de honra.
Perdoa-me esta imagem um pouco indelicada. (...)

Em cada lugar deste mundo está-se «em casa», quando uma pessoa traz tudo consigo.
Muitas vezes senti-me, e ainda me sinto, como um navio que recolheu uma carga preciosa a bordo. Os cabos foram cortados e agora o navio navega plenamente livre e por todos os países levando consigo a carga preciosa.
Uma pessoa deve ser a sua própria pátria.(...)

Uma pessoa deve viver consigo própria como se vivesse com uma multidão inteira. E, interiormente, uma pessoa aprende então a conhecer todas as boas e más características da humanidade. E uma pessoa deve aprender a perdoar os seus próprios defeitos, se é que quer perdoar os outros.
Provavelmente para uma pessoa isto é o mais difícil de aprender, verifico isto frequentemente com outras pessoas (antigamente também comigo, agora já não): perdoar a si próprio os erros e deslizes cometidos. Para tal é preciso em primeiro lugar aceitar, aceitar prodigamente, que uma pessoa comete erros e deslizes.

Gostava muito de viver como os lírios do campo. Se as pessoas entendessem esta época, seriam capazes de aprender com ela a viver como os lírios do campo.

Agora, só restamos eu e Deus. Não há mais ninguém que me possa ajudar. (...)
Não me dá nada a sensação de empobrecimento, antes uma sensação de riqueza e tranquilidade: agora só restamos eu e Deus.

Quando eu quero alguma coisa à força, já há uma quebra no ritmo. Eu não devo querer as coisas, devo deixar que as coisas aconteçam comigo. E não é com isso que estou ocupada neste momento.
Não eu quero, mas sim: seja feita a Tua vontade.

Não existe um poeta dentro de mim, há sim um pedaço de Deus em mim que poderia desenvolver-se até se tornar poeta. Num campo assim tem de haver contudo um poeta que experiencie a vida lá, lá também, e que como poeta a possa cantar.

Dá-me um pequeno verso por dia, meu Deus. E se eu nem sempre o puder copiar por não haver papel ou luz, então hei-de declamá-lo baixinho para o teu grande céu, à noite, mas dá-me um pequeno verso de vez em quando.

É preciso lutar diariamente contra elas como se fossem pulgas, as muitas pequenas ralações dos dias que se seguem e que vão triturando as melhores forças criadoras no ser humano. Em pensamento uma pessoa trata de ajustar coisas para os dias seguintes, e as coisas passam-se de modo diferente, totalmente diferente. O dia de amanhã já terá as suas preocupações. As coisas que têm de ser feitas devem fazer-se e de resto uma pessoa não deve deixar-se infectar pelos muitos medinhos e preocupaçõeszinhas que são outras tantas moções de desconfiança contra Deus. (...)

O maior sofrimento do ser humano é o sofrimento que ele teme. E a matéria, sempre e continuamente a matéria, que atrai tudo o que é espírito em vez de vice-versa. (...)

O conceito de sofrimento (que não é realmente «sofrimento», pois sofrer é em si frutuoso e pode tornar a vida em algo precioso) deve ser desfeito. E se uma pessoa desfaz os conceitos, nos quais a vida está como que aprisionada entre grades, então a pessoa liberta a verdadeira vida dentro de si, mais as forças que lá tem dentro e, consequentemente, uma pessoa terá também as forças para arcar com o verdadeiro sofrimento presente na sua prórpria vida e na do resto da humanidade.(...)

Na realidade, esta é a nossa única obrigação moral: desbravar dentro de nós grandes planícies de tranquilidade, cada vez mais tranquilidade, para a poder irradiar sobre os outros. E quanto mais tranquilidade houver nas pessoas, mais tranquilidade haverá também neste mundo agitado. (...)»

Fonte: Diário de Etty Hillesum (1941-1943)

Nota: No Brasil, este livro foi editado com o título: "Uma Vida Interrompida - os Diários de Etty Hillesum" . Podem encontrar o livro aqui

2 comentários:

Graça ivo disse...

É tudo tão bonito,tão delicado.Não ouso comentar,só agradecer.Mais uma vez!
Obrigada!
Graça

Marlene Maravilha disse...

..."O maior sofrimento do ser humano, é o sofrimento que ele teme"... Isto é de grande conhecimento espiritual.
Deus te abencoe! Um domingo feliz!

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