sexta-feira, 2 de junho de 2017

Tesouros vivos



“Eles respondem ao teu aperto de mão, sorrindo fragilmente: mesmo no inferno a vida pode ressurgir por um segundo, vinda não sabemos de onde, intacta. Basta um pequeno gesto. […] Estas pessoas cuja alma e a carne são feridos têm uma grandeza que jamais terão aqueles que carregam as suas vidas em triunfo. É através dos olhos que eles dizem as coisas, e aquilo que eu li, ilumina-me melhor que os livros.” [Christian Bobin, in “La Présence pure"]

«O mundo está inundado de santos, quero dizer de mártires, porque não distingo estas duas palavras. Multiplicam-se, cada dia são mais numerosos. Chamam-lhes doentes de Alzheimer.

Devemos vê-los como tesouros vivos. Com frequência preguntam-me o caminho, perdidos num mundo mediocremente iluminado por tristes divertimentos. Buscam com mãos trémulas a mão de um anjo, porque sabem que os anjos existem. Ás vezes falam com os seus mortos. Eles que se esquecem de tudo, não se esquecem daqueles que os deslumbraram no passado. 

O meu pai viveu um ano numa dessas casas que deveriam fazer parte do património da humanidade. O seu rosto jamais se desvaneceu. Não acredito no que me dizem: ”Eles não nos reconhecem mais”. Reconhecer é amar, e amar é selvagem, indizível. Quando o meu pai já não sabia nada sobre mim, ainda sabia que eu estava presente, eu sentia-o, pude comprovar isso, e o que comprovas é maior que tudo aquilo que a ciência nos diz. Quando não se lembrava dos nomes, valia-se de artifícios. Quando lhe perguntava algo sobre mim, respondia: “Tu és aquele que nós não esquecemos” e sobre a minha mãe dizia: ”É a melhor”. Estes seres esquecidos, não esquecem nada do essencial. Isto é o que os distingue de nós. 

Acabaremos todos feitos migalhas. Vagueei pelo campo de batalha, vi almas desfiguradas. Escutei sobretudo o silêncio, um toque de alarme de silêncio. O que vi era sublime, banal e terrível. Os rostos fechados. As palavras ausentes. São cerca de quinze velhos. Trazem-lhes comida num carrinho. As pessoas encontram-se à mesa duas vezes por dia. Não se escolheram. Desde a infância que caminham para este reencontro. Caíram os biombos, os biombos da juventude, da beleza e do lugar adquirido. 

Pobres, pobres chamas trémulas, estrelas balbuciantes. O que têm estas pessoas de adorável, é que estão vivos apesar de tudo, apesar delas, e os mais devastados são os mais resplandecentes. Eu tenho visto um tesouro no nada, rostos que são joias atiradas à lama. Acabaremos todos feitos migalhas, mas essas migalhas são de ouro, e um anjo, quando chegar a hora, trabalhará com elas e fará um pão novo.»

Extratos do livro "L’Homme-joie" de Christian Bobin


Nota: Os trechos citados no início desta postagem são do livro "La Présence pure", no qual Christian Bobin conta a experiência de acompanhamento do seu pai doente de Alzheimer. A tradução dos trechos dos dois livros citados é da minha autoria, com base numa tradução em espanhol, e também do original em francês. Não sou tradutor, pelo que a tradução certamente terá as suas imperfeições. Contudo, estou certo que dei o meu melhor para poder cumprir o desejo de dar a conhecer este delicado e sublime testemunho de um escritor que admiro profundamente e que, lamentavelmente, é pouco (re)conhecido em Portugal, tendo apenas dois livros traduzidos em português. 

Texto em espanhol com extratos do livro "L'Homme-joie":

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