"Nada há a dizer dela, a não ser que se completam como os dois pilares do arco-íris, todos os cambiantes de amor passando de um para o outro, todas as cores do sonho. Nada há a dizer dela a não ser o seu nome, e o seu nome diz o que ela é, o que ela dá: Clara, Clareira, clarabóia, clarividente, clarão, esclarecida: todos estes nomes estão no seu nome, todas estas luzes vêm dela, rapariga de dezasseis anos, que os pais querem dar em casamento, rapariga como as que encontramos nas antigas canções francesas, pássaro rebelde ao canto que lhe querem ensinar, pardal que gosta mais de saltitar nos caminhos batidos pela chuva do que refugiar-se debaixo das sombras duma única árvore – mesmo que fosse de alta linhagem. Que queres fazer mais tarde – pergunta-se à criança que não sabe o que quer dizer «mais tarde», que conhece apenas o presente e, no presente, a maravilhosa presença de tudo. […]
Como nas velhas canções, a rapariga vai-se embora, de noite, da casa de seus pais, passa por uma porta secreta, obstruída por uma grande pilha de lenha, retira as achas, uma a uma, com as suas mãos, raspa-se, na noite estrelada, para aquele que cogitou o rapto, o rei dos corações, o príncipe da fuga, Francisco de Assis.
Amam com o mesmo amor, são feitos para se entenderem, ébrios do mesmo vinho. Ela troca o seu vestido resplandecente por um grosseiro gabão de lã, e ei-los, durante anos, juntos e separados, ele que apanha, com a armadilha da sua voz, as aves do céu, os animais dos campos e os homens das cidades, ela que abate, nas redes de Deus, donzelas cada vez mais numerosas, cada vez mais belas.
Dois caçadores furtivos. Dois nómadas sobre as propriedades invisíveis de Deus. […]
Reunidos no colóquio incessante das suas almas, neste êxtase de terem encontrado o interlocutor privilegiado, aquele e aquela que compreende tudo, mesmo os silêncios, mesmo aquilo que não se saberia dizer a si mesmo no silêncio, a irmã, o irmão, sem quem o tempo passado na terra não teria sido senão tempo - nada mais.
A lenda que diz a verdade – não a que está na morte das provas mas a que está no sangue das almas, a lenda diz que, um dia em que Francisco fazia visita a Clara e às suas irmãs no seu convento, deflagrou um incêndio, notado a várias léguas de distância. As pessoas de Assis que acorreram, a fim de o apagar, não viram qualquer chama, fogo nenhum, somente Francisco de Assis e Clara, à volta duma magra refeição, e uma grande luz entre eles, uma claridade impossível de diminuir.
Ele morrerá antes dela, mas isso não é importante, uma vez que o amor, desde a sua vinda, desde o seu primeiro frémito, abolira os velhos decretos do tempo, suprimira essas distinções do antes e do depois, conservando unicamente o hoje eterno dos vivos, o hoje enamorado do amor.»
Christian Bobin, in “Francisco e o Pequenino”
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