Para compreender os carpinteiros é preciso adentrar-se no bosque, disfrutar da sua sombra, tropeçar nas muitas raízes e ouvir o cântico coral. (…) Aqui aparecem as árvores, com a mesma força e exultação das criaturas perante o seu Criador.
Nós, os modernos, costumamos mostrar indiferença pela matéria-prima e render culto ao produto acabado. Estamos habituados a pagar barata a fonte e caro o resultado. A Escritura Santa faz contas às árvores, à madeira e ao trabalho humano. (…)
Ele é carpinteiro, especialista em árvores e em cortes, construtor de móveis para a comunidade. Jesus nasce num estábulo, mas cresce na oficina de um artesão. (…)
A verdade é que Jesus percorreu de princípio a fim a instrução que leva de aprendiz a mestre durante os anos eternos da infância e da adolescência. O seu corpo cresceu debaixo da disciplina do trabalho manual. (…)
Na oficina de Yosef não lhe faltou nenhuma lição, nem sequer a das marteladas nos dedos. Cravou milhares de cravos e pregos até conseguir enfiá-los com três golpes certeiros sem necessidade de olhar para a cabeça onde havia de bater, prova bem conhecida da destreza em todas as carpintarias.
Carregou até ao Gólgota a árvore do patíbulo, e estava já identificado com ela.
Quando lhe entraram na carne os cravos, ao senti-los entrar, encontrou-se, pela primeira vez no lugar da madeira. Conhecia bem aqueles golpes, o som do ferro, o rasgão que se segue a cada martelada. Tinha deixado para trás tudo aquilo que agora voltava a encontrar. Vinha-lhe a imagem de Yosef que deixara entregue à sua velhice. Talvez já tivesse vendido as ferramentas e a oficina ao ver-se sem sucessor. Tocava-lhe a ele, Jesus, terminar como um madeiro estendido e bem preso, a sua vida era uma matéria-prima. A docilidade da madeira e a sua.
Não era como uma árvore que caminha, como dissera o cego de Betsaida. Ele estava plantado no chão e todos os seus passos terminavam ali com os pés juntos e os braços estendidos como ramos.
O Gólgota é um monte nu, sem vegetação. No cimo ergue-se agora um homem árvore, a esvair-se em sangue. O vento sobre o Gólgota vinha de bosques distantes, carregado de cânticos.
Assim, enquanto se consumia o dia mais breve da sua vida, nas narinas entrava-lhe, como uma anestesia, a essência da resina, a ferida da árvore misturava-se com o sangue e os últimos suspiros voltavam aos bosques perfumados. Por isso sorriu e deixou cair a cabeça para o lado, sobre o ombro, lançando a última expiração com um forte estrondo como se fora a folhagem de uma árvore abatida.
________________________________
Erri De Luca, in “Penúltimas palavras acerca Yeshua/Jesus”
Tradução de Glória Marques
Foto:Michael Belk
Sem comentários:
Enviar um comentário